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O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, A LESÃO CORPORAL LEVE, E A RETRATAÇÃO DA VÍTIMA (OPORTUNO TEMPORE) COMO CAUSA DE IMPEDIMENTO PARA O EXERCÍCIO DA AÇÃO PENAL PÚBLICA .

Artigo do Profº Rômulo Moreira.

O Ministro Ricardo Lewandowski deferiu pedido de liminar para afastar os efeitos de acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que, ao manter decisão de primeira instância, deixou de receber denúncia de violência doméstica em razão da retratação da vítima. A decisão foi tomada na Reclamação nº. 18174, na qual o Ministério Público fluminense alegava que o ato questionado teria ofendido entendimento do Supremo na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 19 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4424. “Entendo que é o caso de concessão da liminar”, disse o Ministro Ricardo Lewandowski. Ele lembrou que durante sessão do dia 9 de fevereiro de 2012, o Plenário do Supremo julgou procedente a ADC 19 para assentar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha).

Na ocasião, a Corte reiterou que o legislador, “ao criar mecanismos específicos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher e instituir medidas especiais de proteção, assistência e punição, tomando como base o gênero da vítima, teria utilizado meio adequado e necessário para fomentar o fim traçado pelo parágrafo 8º do artigo 226, da Carta Maior”. Esse dispositivo estabelece que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Para o Ministro Ricardo Lewandowski, a decisão questionada seguiu “linha de orientação diversa da firmada por ocasião desses julgamentos [ADC 19 e ADI 4424], cuja decisões são dotadas de eficácia erga omnes [para todos] e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal”. O Ministro também ressaltou que, quanto à constitucionalidade do artigo 41 da Lei 11.340/2006, o Plenário do Supremo Tribunal Federal apenas ratificou diretriz já firmada no julgamento do Habeas Corpus nº. 106212. O Ministro deferiu o pedido de liminar, sem prejuízo de melhor exame da causa pela relatora do processo, Ministra Rosa Weber.

Eis o caso penal ora comentado: “O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. O MPE-RJ ofereceu denúncia contra W.W.M.T. por suposto crime de lesão corporal praticado com violência doméstica e familiar contra mulher. De acordo com os autos, o procedimento foi arquivado pelo I Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher por considerar ausente a condição de procedibilidade para a deflagração da ação penal, em razão da retratação da representação oferecida pela vítima. Contra essa decisão, o Ministério Público fluminense interpôs recurso, sustentando a natureza incondicionada da ação penal em questão, com base no teor do artigo 41 da Lei 11.340/06 e no entendimento firmado pelo Supremo no julgamento da ADC 19 e da ADI 4424. No entanto, o TJ-RJ negou provimento ao recurso. Na presente reclamação, o MP pedia liminarmente a suspensão do acórdão da Sexta Câmara Criminal do TJ-RJ. No mérito, o autor requer a cassação do ato contestado.”

Eis um erro do Supremo Tribunal Federal, anda que proferido em decisão monocrática. Aliás, “Saímos da ditadura do masculino para a ditadura de um feminino estereotipado. Um feminino que nega tudo o que é feminino.”

Pois bem.

Este trabalho tem por escopo comentar o art. 41 da Lei nº. 11.340/06, a chamada “Lei Maria da Penha” que, em tese, procurou criar “mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”.

Segundo a lei, “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.” A violência pode ser praticada: a) “no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas”;b) “no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” ouc) “em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.”

Ademais, compreende:a) “a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal”;b) “a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”;c) “a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”;d) “a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades” ee) “a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.”

É importante ressaltar que a lei não contém nenhum novo tipo penal, apenas dá um tratamento penal e processual distinto para as infrações penais já elencadas em nossa (vasta e exagerada) legislação. De toda maneira, entendemos extremamente perigosa a utilização, em um texto legal de natureza penal e processual penal (e gravoso para o indivíduo), de termos tais como “diminuição da autoestima”, “esporadicamente agregadas”, “indivíduos que são ou se consideram aparentados”, “em qualquer relação íntima de afeto”, etc., etc.

Observa-se, porém, que uma agressão de ex-namorado contra antiga parceira não configura violência doméstica. Com esse entendimento, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, declarou competente o juízo de direito do Juizado Especial Criminal de Conselheiro Lafaiete, em Minas Gerais, para julgar e processar ação contra agressor da ex-namorada. No caso, o homem encontrou a ex-namorada na companhia do atual parceiro e praticou a agressão. Ele jogou um copo de cerveja no rosto dela, deu-lhe um tapa e a ameaçou. O Ministério Público entendeu ser caso de violência doméstica e, por isso, considerou que deveria ser julgado pela Justiça comum. Acatando esse parecer, o juízo de Direito do Juizado Especial Criminal de Conselheiro Lafaiete encaminhou os autos para a 1ª Vara Criminal da cidade. Porém, a Vara Criminal levantou o conflito de competência por entender que não se tratava de violência doméstica e, por essa razão, a questão deveria ser julgada pelo Juizado Especial. Em sua decisão, o relator, ministro Nilson Naves, destacou que a Lei Maria da Penha não abrange as conseqüências de um namoro acabado. Por isso, a competência é do Juizado Especial Criminal.

Acompanharam o relator os ministros Felix Fischer, Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima, Maria Thereza de Assis Moura, Jorge Mussi e Og Fernandes. O ministro Napoleão Nunes Maia Filho divergiu do relator e foi acompanhado pela desembargadora convocada Jane Silva. Segundo ela, o namoro configura, para os efeitos da Lei Maria da Penha, relação doméstica ou familiar, já que trata de uma relação de afeto.” (Processos: CC 91980 e CC 94447).

Segundo o seu art. 6º., a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos; logo, é possível que a apuração do crime daí decorrente seja da atribuição da Polícia Federal, na forma do art. 1º., caput e inciso III, da Lei nº. 10.446/02; ainda em tese, também é possível que a competência para o processo e julgamento seja da Justiça Comum Federal, ex vi do art. 109, V-A, c/c o § 5º., da Constituição Federal, desde que se inicie, via Procurador-Geral da República, e seja julgado procedente o Incidente de Deslocamento de Competência junto ao Superior Tribunal de Justiça). Esta conclusão decorre das normas referidas, bem como em razão do Brasil ser subscritor da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher e da Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher .

Não pretendemos ferir suscetibilidades ou idiossincrasias, apenas manifestar o nosso entendimento sobre uma norma jurídica que entendemos ferir a Constituição Federal. Como diz Paulo Freire, “só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas. Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e necessariamente distante do puritanismo, rigorosamente ético e gerador de boniteza, me parece inconciliável com a desvergonha da arrogância de quem se acha cheia ou cheio de si mesmo.”

Estamos de acordo com a tutela penal diferençada para hipossuficientes (inclusive pelo desvalor da ação ), mas sem máculas à Constituição Federal e aos princípios dela decorrentes e inafastáveis. Neste ponto, concordamos com Naele Ochoa Piazzeta, quando afirma que “corretas, certas e justas modificações nos diplomas legais devem ser buscadas no sentido de se ver o verdadeiro princípio da igualdade entre os gêneros, marco de uma sociedade que persevera na luta pela isonomia entre os seres humanos, plenamente alcançado.”

Como afirma Willis Santiago Guerra Filho, “princípios como o da isonomia e proporcionalidade são engrenagens essenciais do mecanismo político-constitucional de acomodação dos diversos interesses em jogo, em dada sociedade, sendo, portanto, indispensáveis para garantir a preservação de direitos fundamentais, donde podermos incluí-los na categoria, equiparável, das ´garantias fundamentais’.”

Vejamos, então, o conteúdo deste trabalho, quando analisaremos o art. 16 da referida lei que tem a seguinte redação: “Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.”

Desde logo, atentemos para a impropriedade técnica do termo “renúncia”, pois se o direito de representação já foi exercido (tanto que foi oferecida a denúncia), obviamente não há falar-se em renúncia; certamente o legislador quis referir-se à retratação da representação, o que é perfeitamente possível, mesmo após o oferecimento daquela condição específica de procedibilidade da ação penal.

Sabe-se, no entanto, que o art. 25 do Código de Processo Penal só permite a retratação da representação até o oferecimento da denúncia; no caso desta lei, porém, a solução do legislador foi outra, permitindo-se a retratação mesmo após o oferecimento da peça acusatória. O limite agora (e quando se tratar de crime relacionado à violência doméstica e familiar contra a mulher) é a decisão do Juiz recebendo a denúncia.

Portanto, diferentemente da regra estabelecida pelo art. 25 do Código de Processo Penal, a retratação da representação pode ser manifestada após o oferecimento da denúncia, desde que antes da decisão acerca de sua admissibilidade. Neste ponto, mais duas observações: em primeiro lugar a lei foi mais branda com os autores de crimes praticados naquelas circunstâncias, o que demonstra de certa forma uma incoerência do legislador. Ora, se se queria reprimir com mais ênfase este tipo de violência, por que “elastecer” o prazo para a retratação da representação? Evidentemente que é mais benéfica para o autor do crime a possibilidade de retratação em tempo maior que aquele previsto pelo art. 25, Código de Processo Penal.

Tratando-se de norma processual penal material, e sendo mais benéfica, deve retroagir para atingir processos relativos aos crimes praticados anteriormente à vigência da lei (data da ação ou omissão – arts. 2º. e 4º. do Código Penal).

Uma segunda observação é a exigência legal que esta retratação somente possa ser feita “perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, (…) ouvido o Ministério Público.” Aqui, a intenção do legislador foi revestir a retratação de toda a formalidade própria de uma audiência realizada no Juízo Criminal, presentes o Juiz de Direito e o Ministério Público. Neste aspecto, sendo mais gravosa a norma processual penal material, sua aplicação deve se restringir aos fatos ocorridos posteriormente, ou seja, para os crimes praticados após a vigência da lei.

De toda maneira, ressaltamos que se esta retratação deve ser necessariamente formal (e formalizada), o mesmo não ocorre com a representação que, como sabemos, dispensa maiores formalidades (sendo este um entendimento já bastante tranquilo dos nossos tribunais e mesmo da Suprema Corte). O prazo para o oferecimento da representação (bem como o dies a quo) continua sendo o mesmo (art. 38, CPP). Ademais, é perfeitamente válida a representação feita perante a autoridade policial, pois assim permite o art. 39 do Código de Processo Penal.

Como se sabe, a representação é uma condição processual relativa a determinados delitos, sem a qual a respectiva ação penal, nada obstante ser pública, não pode ser iniciada pelo órgão ministerial; é uma manifestação de vontade externada pelo ofendido (ou por quem legalmente o represente) no sentido de que se proceda à persecutio criminis. De regra, esta representação “consiste em declaração escrita ou oral, dirigida à autoridade policial, ou ao órgão do Ministério Público, ou ao Juiz”, como afirmava Borges da Rosa. Porém, a doutrina e a jurisprudência pátrias trataram de amenizar este rigor outrora exigido, a fim de que pudessem ser dados ao instituto da representação traços mais informais e, conseqüentemente, mais justos e consentâneos com a realidade.

Assim é que hodiernamente “a representação, quanto à formalidade, é figura processual que se reveste da maior simplicidade. Inocorre, em relação à mesma qualquer rigor formal” e esta “dispensa do requisito das formalidades advém da circunstância de que a representação é instituída no interesse da vítima e não do acusado, daí a forma mais livre possível na sua elaboração.”

Neste sentido a jurisprudência é pacífica:

“SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – HABEAS CORPUS Nº. 20.401 – RJ (2002/0004648-6) (DJU 05.08.02, SEÇÃO 1, P. 414, J. 17.06.02). RELATOR: MINISTRO FERNANDO GONÇALVES. Resta prejudicado o habeas corpus, por falta de objeto, quando o motivo do constrangimento não mais existe. 2 – Nos crimes de ação pública, condicionada à representação, esta independe de forma sacramental, bastando que fique demonstrada, como na espécie, a inequívoca intenção da vítima e/ou seu representante legal, nesta extensão, em processar o ofensor. Decadência afastada. 3 – Ordem conhecida em parte e, nesta extensão, denegada.”

Aliás, este é o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal (neste sentido conferir RT 731/522; JSTF 233/390; RT 680/429, etc). No julgamento do Habeas Corpus nº. 88843, por unanimidade, os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, apesar de concederem a ordem de ofício (para afastar qualquer impedimento contra a progressão do regime prisional em favor de um condenado por atentado violento ao pudor com violência presumida), negaram, no entanto, o pedido formulado pela defesa por entender “que, de acordo com diversos precedentes da Corte, o entendimento firmado no STF é de que não se deve exigir a observância rígida das regras quanto à representação, principalmente quando se trata de crimes dessa natureza”, segundo o relator, Ministro Marco Aurélio. Para a Defensoria Pública paulista, que impetrou a ação no Supremo em favor do condenado, a decisão do Superior Tribunal de Justiça, que negou pedido idêntico feito àquela corte, estaria equivocada, uma vez que seria necessário haver uma representação formal contra o réu, para que ele fosse processado. E que a representação que houve, no caso, foi feita pela vítima, uma menor de idade. O depoimento da vítima, menor de idade, manifestando a intenção de perseguir o acusado em juízo, foi usado para suprir a representação, disse o defensor público. Como a vítima é menor de idade, tal depoimento não é valido, não supre a representação, afirmou ainda a defensoria, para quem “aceitar essa tese é burlar o devido processo legal”. Fonte: STF.

Pergunta-se: deve o representante do Ministério Público, antes de oferecer a denúncia, pugnar ao Juiz pela realização daquela audiência? Entendemos que não, pois a audiência prevista neste artigo deve ser realizada apenas se a vítima (ou seu representante legal ou sucessores ou mesmo o curador especial – art. 33 do Código de Processo Penal) manifestar algum interesse em se retratar da representação. Não vemos necessidade de, a priori, o órgão do Ministério Público requerer a designação da audiência. Ora, se a vítima representou (seja formal ou informalmente), satisfeita está a condição específica de procedibilidade para a ação penal. O requerimento para a realização desta audiência (ou a sua designação ex officio pelo Juiz de Direito) fica “até parecendo” que se deseja a retratação a todo custo.

Observa-se, outrossim, que a retratação deve ser um ato espontâneo da vítima (ou de quem legitimado legalmente), não sendo necessário que ela seja levada a se retratar por força da realização de uma audiência judicial.

Exatamente neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “a vítima de violência doméstica não pode ser constrangida a ratificar perante o juízo, na presença de seu agressor, a representação para que tenha seguimento a ação penal. Com esse entendimento, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu mandado de segurança ao Ministério Público do Mato Grosso do Sul para que a audiência prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha só ocorra quando a vítima manifeste, antecipada, espontânea e livremente, o interesse de se retratar. A decisão é unânime. A Lei 11.340/06, conhecida por Maria da Penha, criou mecanismos de proteção contra a violência doméstica e familiar sofrida pelas mulheres. Entre as medidas, está a previsão de que a ação penal por lesão corporal leve é pública – isto é, deve ser tocada pelo MP –, mas condicionada à representação da vítima. O STJ já pacificou o entendimento de que essa representação não exige qualquer formalidade, bastando a manifestação perante autoridade policial para configurá-la. Para o Tribunal de Justiça sul-matogrossense, a designação dessa audiência seria ato judicial de mero impulso processual, não configurando ilegalidade ou arbitrariedade caso realizada espontaneamente pelo juiz. Mas o desembargador convocado Adilson Macabu divergiu do tribunal local. Para o relator, a audiência prevista no dispositivo não deve ser realizada de ofício, como condição da abertura da ação penal, sob pena de constrangimento ilegal à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Isso “configuraria ato de ‘ratificação’ da representação, inadmissível na espécie”, asseverou. “Como se observa da simples leitura do dispositivo legal, a audiência a que refere o artigo somente se realizará caso a ofendida expresse previamente sua vontade de se retratar da representação ofertada em desfavor do agressor”, acrescentou o relator. “Assim, não há falar em obrigatoriedade da realização de tal audiência, por iniciativa do juízo, sob o argumento de tornar certa a manifestação de vontade da vítima, inclusive no sentido de ‘não se retratar’ da representação já realizada”, completou. Em seu voto, o desembargador indicou precedentes tanto da Quinta quanto da Sexta Turma nesse mesmo sentido.” (Fonte: Coordenadoria de Editoria e Imprensa do Superior Tribunal de Justiça).

Também no Supremo Tribunal Federal decidiu-se que “a audiência prevista no referido artigo não é obrigatória para o recebimento da denúncia, como sustentava a defesa. Ela é facultativa e deve ser provocada pela vítima, caso deseje, antes de recebida a denúncia, o que não ocorreu no caso em questão.” (Habeas Corpus 109176, Relator Ministro Ricardo Lewandowski).

E qual o sentido da aplicação do art. 41 da Lei nº. 9.099/95? Nenhum!

E mais: entendemos tratar-se de artigo inconstitucional. Valem as mesmas observações expendidas quando da análise do art. 17. São igualmente feridos princípios constitucionais (igualdade e proporcionalidade ). Assim, para nós, se a infração penal praticada for um crime de menor potencial ofensivo (o art. 41 não se refere às contravenções penais) devem ser aplicadas todas as medidas despenalizadoras previstas na Lei nº. 9.099/95 (composição civil dos danos, transação penal e suspensão condicional do processo), além da medida “descarcerizadora” do art. 69 (Termo Circunstanciado e não lavratura do auto de prisão em flagrante, caso o autor do fato comprometa-se a comparecer ao Juizado Especial Criminal).

Seguindo o mesmo raciocínio, em relação às lesões corporais leves e culposas, a ação penal continua a ser pública condicionada à representação, aplicando-se o art. 88 da Lei nº. 9.099/95.

Cremos que devemos interpretar tal dispositivo à luz da Constituição Federal e não o contrário. Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas.” Devemos interpretar as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário! Segundo Frederico Marques, a Constituição Federal “não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico.”

A prevalecer a tese contrária (pela constitucionalidade do artigo), uma injúria praticada contra a mulher naquelas circunstâncias não seria infração penal de menor potencial ofensivo (interpretando-se o art. 41 de forma literal); já uma lesão corporal leve, cuja pena é o dobro da injúria, praticada contra um idoso ou uma criança (que também mereceram tratamento diferenciado do nosso legislador – Lei nº. 10.741/03 e Lei nº. 8.069/90) é um crime de menor potencial ofensivo. No primeiro caso, o autor da injúria será preso e autuado em flagrante, responderá a inquérito policial, haverá queixa-crime, etc., etc. Já o segundo agressor não será autuado em flagrante, será lavrado um simples Termo Circunstanciado, terá a oportunidade da composição civil dos danos, da transação penal e da suspensão condicional do processo, etc., etc. (arts. 69, 74, 76 e 89 da Lei nº. 9.099/95). Outro exemplo: em uma lesão corporal leve praticada contra uma mulher a ação penal independe de representação (é pública incondicionada), mas uma lesão corporal leve cometida contra um infante ou um homem de 90 anos depende de representação. Outro exemplo: um pai agride e fere levemente seus dois filhos gêmeos, um homem e uma mulher; receberá tratamento jurídico-criminal diferenciado. Onde nós estamos!

Nada obstante, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que autores de violência doméstica contra mulheres podem ser processados pelo Ministério Público, independentemente de autorização da vítima. A conclusão, por maioria, é da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao considerar que a ação penal contra o agressor deve ser pública incondicionada. No recurso especial dirigido ao STJ, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios protestava contra o trancamento da ação penal contra o agressor E.S.O., do Distrito Federal. Após a retratação da vítima em juízo, afirmando não querer mais perseguir criminalmente o agressor, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) trancou a ação, afirmando que não haveria justa causa para o seu prosseguimento. Segundo o TJDFT, os delitos de lesões corporais leves e culposas continuam tendo a natureza jurídica de pública condicionada à representação, pois o sistema processual brasileiro tem regência da unicidade. “Não havendo a possibilidade jurídica para o prosseguimento da ação penal, em face das disposições do artigo 16 da Lei ‘Maria da Penha’, qual seja, a manifestação da vítima perante o juiz de não mais processar o seu companheiro, concede-se a ordem de habeas corpus para determinar-se o trancamento da ação penal por faltar-lhe a justa causa”, afirmou a decisão do TJDFT. Na decisão, o tribunal brasiliense ressalvou, ainda, a possibilidade de a vítima, a qualquer momento, no prazo de seis meses, voltar a exercer o direito de denunciar o agressor. Para o Ministério Público, no entanto, a decisão ofendeu os artigos 13, 16 e 41 da Lei Maria da Penha, além dos artigos 648, I, e 38 do Código de Processo Penal, artigo 88 da Lei n. 9.0909/95 e os artigos 100 e 129, parágrafo 9, do Código Penal. Requereu, então, a reforma da decisão, alegando que a ação penal do presente delito tem natureza pública incondicionada, não sendo dependente da representação da vítima. Em parecer sobre o caso, o Ministério Público Federal observou que a Lei Maria da Penha prescreve, em seu artigo 41, que não se aplica a Lei n. 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo o Ministério Público Federal, deve ser reconhecido o direito do Estado em dar prosseguimento à ação penal, vez que esta não depende de representação da vítima, devendo ser reconhecida a justa causa para a perseguição criminal do agressor. A relatora do caso, a desembargadora convocada Jane Silva, concordou com os argumentos e foi acompanhada pelo ministro Paulo Gallotti. Os ministros Nilson Naves e Maria Theresa de Assis Moura divergiram. Em seu voto-vista, o ministro Og Fernandes desempatou em favor da tese do Ministério Público: a ação contra autores de violência doméstica contra a mulher deve ser pública incondicionada. O mesmo resultado foi adotado para o Recurso Especial 1.050.276, também do Distrito Federal.

Em julgamento posterior, no entanto, o Superior Tribunal de Justiça decidiu contrariamente: “A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, concedeu a ordem de habeas corpus, mudando o entendimento quanto à representação prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006. Considerou que, se a vítima só pode retratar-se da representação perante o juiz, a ação penal é condicionada. Ademais, a dispensa de representação significa que a ação penal teria prosseguimento e impediria a reconciliação de muitos casais.” (HC 113.608-MG, Rel. originário Min. Og Fernandes, Rel. para acórdão Min. Celso Limongi – Desembargador convocado do TJ-SP, julgado em 5/3/2009).

Também alguns tribunais estaduais:

“A incidência irrestrita da Lei 11.340/06 para tutelar, além da mulher adulta, a criança do sexo feminino, importa em proteção superlativa, com ofensa direta aos princípios constitucionais da isonomia e da razoabilidade. A vulnerabilidade e a hipossuficiência de tal categoria, justificativa do tratamento legal especial, diferentemente do que ocorre com a mulher adulta, independe do gênero sexual, não servindo, os arts. 2º. e 13º. daquele diploma, como fundamento adequado para ilações em sentido contrário. Conflito negativo julgado improcedente, competente o juízo da 12ª. Vara Criminal de Goiânia.” (TJGO – 2ª C. – rel. Marcio de Castro Molinari – j. 01.04.2009).

“A lei n° 11.340/06 (Lei Maria da Penha), não retirou a faculdade de representação da vítima, haja vista a possibilidade de renúncia. Desde modo, não se há falar em ação pública incondicionada nos casos de lesões corporais oriundas de violência doméstica. Assim, havendo retratação da representação em audiência designada para tal finalidade, antes do recebimento da denúncia, o não recebimento da mesma e arquivamento dos autos é medida que se impõe, ante e falta de procedibilidade para a ação penal. Recurso ministerial improvido” (TJMG – 5ª C. – RESE 1.0024.07.759594-0/001(1) – rel. Adilson Lamounier – j. 23.09.2008 – DOE 06.10.2008).

“A Lei Maria da Penha não retirou a faculdade de representação da ofendida nos crimes de lesão corporal, nem transformou a ação penal em incondicionada, uma vez que o artigo 16 da Lei 11. 340/06 faculta a renúncia à representação da vítima. Nas ações penais públicas condicionadas à representação, considera-se não satisfeita a condição de procedibilidade diante da ausência de demonstração inequívoca de intenção da vítima em ver deflagrada a ação penal conta o ofensor, não bastando a mera narrativa dos fatos ocorridos” (TJMG – 5ª C. – RESE 1.0210.08.048129-9/001(1) – rel. Adilson Lamounier – j. 20.01.2009 – DOE 02.02.2009).

Nada obstante, insistimos que o princípio da proporcionalidade não foi observado, o que torna inválida esta norma (como também a do art. 17), apesar de vigente. Como observa Mariângela Gama de Magalhães Gomes, este princípio “desempenha importante função dentro do ordenamento jurídico, não apenas penal, uma vez que orienta a construção dos tipos incriminadores por meio de uma criteriosa seleção daquelas condutas que merecem uma tutela diferenciada (penal) e das que não a merecem, assim como fundamenta a diferenciação nos tratamentos penais dispensados às diversas modalidades delitivas; além disso, conforme enunciado, constitui importante limite à atividade do legislador penal (e também do seu intérprete), posto que estabelece até que ponto é legítima a intervenção do Estado na liberdade individual dos cidadãos.”

Para Pedraz Penalva, “a proporcionalidade é, pois, algo mais que um critério, regra ou elemento técnico de juízo, utilizável para afirmar conseqüências jurídicas: constitui um princípio inerente ao Estado de Direito com plena e necessária operatividade, enquanto sua devida utilização se apresenta como uma das garantias básicas que devem ser observadas em todo caso em que possam ser lesionados direitos e liberdades fundamentais.”

Feriu-se, outrossim, o princípio da igualdade, previsto expressamente no art. 5º., caput da Constituição Federal. Este princípio constitucional “significa a proibição, para o legislador ordinário, de discriminações arbitrárias: impõe que a situações iguais corresponda um tratamento igual, do mesmo modo que a situações diferentes deve corresponder um tratamento diferenciado.” Segundo ainda Mariângela Gama de Magalhães Gomes, a igualdade “ordena ao legislador que preveja com as mesmas conseqüências jurídicas os fatos que em linha de princípio sejam comparáveis, e lhe permite realizar diferenciações apenas para as hipóteses em que exista uma causa objetiva – pois caso não se verifiquem motivos desta espécie, haverá diferenciações arbitrárias.”

Para Ignacio Ara Pinilla, “la preconizada igualdad de todos frente a la ley (…) ha venido evolucionando en un sentido cada vez más contenutista, comprendiédose paulatinamente como interdicción de discriminaciones, o, por lo menos, como interdicción de discriminaciones injustificadas.”

Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, “há ofensa ao preceito constitucional da isonomia quando a norma singulariza atual e definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura e indeterminada.”

Mas, infelizmente, como afirma Francesco Palazzo, “a influência dos valores constitucionais vem, pouco a pouco, crescendo sempre no arco dos tempos, sem que, no entanto, ainda assim as transformações constitucionais tenham logrado produzir a esperada reforma orgânica do sistema penal, inclusive.”

Canotilho explica que são “princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.”

Este art. 41 também afronta o disposto no art. 98, I da Constituição Federal, pois a competência dos Juizados Especiais Criminais é ditada pela natureza da infração penal, estabelecida em razão da matéria e, portanto, de caráter absoluto, ainda mais porque tem base constitucional; neste sentido, Mirabete e Ada, respectivamente:

“A competência do Juizado Especial Criminal restringe-se às infrações penais de menor potencial ofensivo, conforme a Carta Constitucional e a lei. Como tal competência é conferida em razão da matéria, é ela absoluta.”

“A competência do Juizado, restrita às infrações de menor potencial ofensivo, é de natureza material e, por isso, absoluta.”

Igualmente Cezar Roberto Bitencourt, para quem “a competência ratione materiae, objeto de julgamento pelos Juizados Especiais Criminais, apresenta-se da seguinte forma: crimes com pena máxima cominada não superior a dois anos e contravenções penais.”

Sidney Eloy Dalabrida também já escreveu:

“A competência do Juizado Especial Criminal foi firmada a nível constitucional (art. 98, I, CF), restringindo-se à conciliação (composição e transação), processo, julgamento e execução de infrações penais de menor potencial ofensivo. É competência que delimita o poder de julgar em razão da natureza do delito (ratione materiae), e, sendo assim, absoluta.”

Repita-se que a competência da qual ora falamos tem índole constitucional (art. 98, I da Carta Magna), sendo nulos todos os atos porventura praticados, não somente os decisórios, como também os probatórios, “pois o processo é como se não existisse.”

Se assim o é, ou seja, se a própria Constituição estabeleceu a competência dos Juizados Especiais Criminais para o processo, julgamento e execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, é induvidoso não ser possível a exclusão desta competência em razão do sujeito passivo atingido (mulher) e pela circunstância de se tratar de violência doméstica e familiar.

É bem verdade que a própria Lei nº. 9.099/95 prevê duas hipóteses em que é afastada a sua competência (arts. 66, parágrafo único e 77, § 2o.), mas este fato não representa obstáculo ao que dissemos, pois se encontra dentro da faixa de disciplina possível para a Lei nº. 9.099/95, permitida pelo art. 98 da Constituição. Em outras palavras: ao delimitar a competência dos Juizados, poderia a respectiva lei, autorizada pela Lei Maior, estabelecer exceções à regra, observando, evidentemente, os critérios orientadores estabelecidos pela própria lei.

Efetivamente, na Lei nº. 9.099/95 há duas causas modificadoras da competência: a complexidade ou circunstâncias da causa que dificultem a formulação oral da peça acusatória (art. 77, § 2º.) e o fato do réu não ser encontrado para a citação pessoal (art. 66, parágrafo único) . Porém, o certo é que tais disposições não ferem a Constituição Federal, pois as duas hipóteses se ajustam perfeitamente aos critérios da celeridade, informalidade e economia processual propostos pelo legislador (art. 62, Lei nº. 9.099/95). Nada mais razoável e proporcionalmente aceitável que retirar dos Juizados Especiais o réu citado por edital (ao qual será aplicado, caso não compareça, o art. 366 do CPP) e um processo mais complexo: são circunstâncias que, apesar de excluírem a competência dos Juizados, ajustam-se perfeitamente àqueles critérios acima indicados e são, portanto, constitucionalmente aceitáveis.

Observa-se que se as leis respectivas “podem definir quais são as infrações, podem, também, o menos, que é excluir aquelas que, mesmo sendo de menor potencial ofensivo, não são recomendadas para serem submetidas ao Juizado, desde que não se subtraia de todo a competência estabelecida constitucionalmente”, como bem anotou Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho. (grifo nosso).

Destarte, subtraindo a competência dos Juizados Especiais Criminais, a referida lei incidiu em flagrante inconstitucionalidade, pois a competência determinada expressamente pela Constituição Federal não poderia ter sido reduzida por lei infraconstitucional.

O texto constitucional é explícito ao garantir ao autor da infração penal de menor potencial ofensivo o procedimento oral e sumariíssimo. Segundo Antonio Scarance Fernandes, “a incorporação, nos ordenamentos, de modelos alternativos aos procedimentos comuns ou ordinários gera para as partes o direito a que, presentes os requisitos legais, sejam obrigatoriamente seguidos. (…) Em relação à extensão do procedimento, têm as partes direito aos atos e fases que formam o conjunto procedimental. Em síntese, têm direito à integralidade do procedimento.”

Ademais, “o procedimento pode ser visto como as regras de um jogo, que devem ser obedecidas para que seja legítima a competição. O cumprimento dos atos e fases procedimentais se impõe tanto ao Juiz quanto às partes e a todos os sujeitos que participarem do processo, isso porque o procedimento é integral.

Além disso, prevendo a lei um procedimento específico para determinada relação de Direito Material controvertida, não cabe ao Juiz dispensá-la, impondo-se sua observância, em respeito ao devido processo legal. Justifica-se isso em virtude de os atos previstos na cadeia procedimental serem adequados à tutela de determinadas situações, daí serem imprescindíveis, ou seja, o procedimento ostenta uma tipicidade.”

A propósito, mutatis mutandis, veja um trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.797-2:

“(…) Esta Suprema Corte, ao exercer o seu poder de indagação constitucional – consoante adverte CASTRO NUNES (“Teoria e Prática do Poder Judiciário”, p. 641/650, 1943, Forense) – deve ter presente, sempre, essa técnica lógico-racional, fundada na teoria jurídica dos poderes implícitos, para, através dela, mediante interpretação judicial (e não legislativa), conferir eficácia real ao conteúdo e ao exercício de dada competência constitucional, consideradas as atribuições do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça , tais como expressamente relacionadas no texto da própria Constituição da República. (…) Vê-se, portanto, que são inconfundíveis – porque inassimiláveis tais situações – a possibilidade de interpretação, sempre legítima, pelo Poder Judiciário, das normas constitucionais que lhe definem a competência e a impossibilidade de o Congresso Nacional, mediante legislação simplesmente ordinária, ainda que editada a pretexto de interpretar a Constituição, ampliar, restringir ou modificar a esfera de atribuições jurisdicionais originárias desta Suprema Corte, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça estaduais , por tratar-se de matéria posta sob reserva absoluta de Constituição. (…) Em suma, Senhora Presidente, o Congresso Nacional não pode – simplesmente porque não dispõe, constitucionalmente, dessa prerrogativa – ampliar (tanto quanto reduzir ou modificar), mediante legislação comum, a esfera de competência originária do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados . (…) O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação da Constituição. De tudo resulta que a lei ordinária que se limite a pretender impor determinada inteligência da Constituição é, só por isso, formalmente inconstitucional. (…) Coisa diversa, convém repisar, é a lei pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: aí, a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação de norma de hierarquia superior. (…) Daí a correta lição expendida pelo ilustre magistrado ANDRÉ GUSTAVO C. DE ANDRADE (“Revista de Direito Renovar”, vol. 24/78-79, set/dez 02), que também recusa, ao Poder Legislativo, a possibilidade de, mediante verdadeira “sentença legislativa”, explicitar, em texto de lei ordinária, o significado da Constituição. Diz esse ilustre autor: ´Na direção inversa – da harmonização do texto constitucional com a lei – haveria a denominada interpretação da Constituição conforme as leis, mencionada por Canotilho como método hermenêutico pelo qual o intérprete se valeria das normas infraconstitucionais para determinar o sentido dos textos constitucionais, principalmente daqueles que contivessem fórmulas imprecisas ou indeterminadas. Essa interpretação de mão trocada se justificaria pela maior proximidade da lei ordinária com a realidade e com os problemas concretos. O renomado constitucionalista português aponta várias críticas que a doutrina tece em relação a esse método hermenêutico, que engendra como que uma ‘legalidade da Constituição a sobrepor-se à constitucionalidade das leis’. Tal concepção leva ao paroxismo a idéia de que o legislador exercia uma preferência como concretizador da Constituição. Todavia, o legislador, como destinatário e concretizador da Constituição, não tem o poder de fixar a interpretação ‘correta’ do texto constitucional. Com efeito, uma lei ordinária interpretativa não tem força jurídica para impor um sentido ao texto constitucional, razão pela qual deve ser reconhecida como inconstitucional quando contiver uma interpretação que entre em testilha com este.”

Diante do exposto, este dispositivo da nova lei não deve ser aplicado pelo Juiz, pois, como se sabe, o controle de constitucionalidade judiciário no Brasil tem o caráter difuso , podendo “perante qualquer juiz ser levantada a alegação de inconstitucionalidade e qualquer magistrado pode reconhecer essa inconstitucionalidade e em conseqüência deixar de aplicar o ato inquinado”, na lição do constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho.

Diante destas considerações, entendemos que o art. 41 da Lei nº. 11.340/2006 não deve ser aplicados pois, apesar de normas vigentes formalmente (porque aprovadas pelo Poder Legislativo e promulgadas pelo Poder Executivo), são substancialmente inválidas, tendo em vista a incompatibilidade material com a Constituição Federal . Relembremos que “não se pode interpretar a Constituição conforme a lei ordinária (gesetzeskonformen Verfassunsinterpretation). O contrário é que se faz.” Uma coisa é lei vigente, outra é lei válida.

Vejamos a lição de Miguel Reale:“Validade formal ou vigência é, em suma, uma propriedade que diz respeito à competência dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do Direito no plano normativo.”

Nem toda lei vigente é válida e só a lei válida e que esteja em vigor deve ser observada pelos cidadãos e operadores de Direito. Como afirma Enrique Bacigalupo, “la validez de los textos y de las interpretaciones de los mismos dependerá de su compatibilidad con principios superiores. De esta manera, la interpretación de la ley penal depende de la interpretación de la Constitución.”

A propósito, Ferrajoli: “Para que una norma exista o esté en vigor es suficiente que satisfaga las condiciones de validez formal, condiciones que hacen referencia a las formas y los procedimientos de acto normativo, así como a la competência del órgano de que emana. Para que sea válida se necesita por el contrario que satisfaga también las condiciones de validez sustancial, que se refieren a su contenido, o sea, a su significado.” Para o autor, “las condiciones sustanciales de la validez, y de manera especial las de la validez constitucional, consisten normalmente en el respeto de valores – como la igualdad, la libertad, las garantias de los derechos de los ciudadanos.” (Grifos no original).

Segundo o jornal Folha de São Paulo, edição on line do dia 07 de agosto de 2008, “o número de denúncias de agressões a mulheres no país mais do que dobrou no comparativo do primeiro semestre deste ano em relação a igual período de 2007. Números apresentados nesta quinta-feira pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres com base no número de serviço 180 –a central de atendimento à mulher– apontam que de janeiro a junho de 2008 foram feitos 121.891 contra 58.417 em igual período de 2007, num incremento de 107,9%. A lei Maria da Penha, que pune com mais rigidez os agressores de mulheres, completa dois anos hoje. Os dados mostram ainda um crescimento quase três vezes e meio superior na quantidade de pessoas que pretendem se informar sobre a lei. Enquanto no primeiro semestre do ano passado 11.020 ligações foram atendidas com o intuito de prestar esclarecimentos sobre a lei, no primeiro semestre de 2008 os atendimentos foram de 49.025. Distrito Federal, São Paulo, Pará e Goiás lideram o ranking das denúncias. Na outra ponta estão Acre, Maranhão e Amazonas. O levantamento mostra que 61,5% das mulheres informaram sofrer agressões diariamente e outras 17,8% são alvo toda semana de destratos. A maior parte das agressões (63,9%) são praticadas pelos próprios companheiros. Em 58,4% dos casos relatados, os agressores estavam bêbados ou eram usuários de drogas. Segundo a subsecretária Aparecida Gonçalves, da área de Enfrentamento à Violência da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, a maior incidência de denúncias na região Centro-Oeste do país se deve ao que ela considera um maior nível de informação a respeito da legislação que estabelece maior rigor nas punições aos agressores de mulheres. Isso relativiza o fato de Estados do extremo do país apareçam nas últimas colocações. “A cada ano temos uma maior divulgação da lei, e a medida que ela passa a ter uma maior efetividade, isso reflete nas denúncias. Só as respostas efetivas aos casos de agressões virão a fortalecer esses números”, afirma Gonçalves. Apesar de a maior parcela das agressões ser cometida quando o parceiro está drogado ou bêbado, ela afirma que a questão é cultural. “Se fosse só a agressão em si, ele [agressor] bateria num amigo do bar, não na mulher, ao chegar em casa”, afirma. Durante cerimônia ocorrida no Palácio do Planalto, foram mostrados também os resultados de uma pesquisa a respeito da lei Maria da Penha. A pesquisa Ibope/Themis (Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero) –esta última uma ONG gaúcha– revelou que 68% da população brasileira já ouviu falar da lei. Outros 82% conhecem a sua eficácia. A consulta foi realizada entre os dias 17 e 21 de julho, com 2.002 entrevistados em 142 municípios brasileiros. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos. A pesquisa mostra que 32% não conhece e nem ouviu falar da lei. Um quinto dos pesquisados (20%) respondeu acreditar que a lei Maria da Penha coloca o agressor na cadeia e 33% afirmaram que ela inibe a violência doméstica. Após ser agredida, segundo os respondentes, 38% das mulheres procuram as delegacias especializadas de atendimento à mulher e 19% outras delegacias. Para 42% dos entrevistados, as mulheres não procuram serviço de apoio.”

A título de conclusão, e para refletirmos, oportuna também a transcrição da lição de Roberta Toledo Campos:

“O homem exalta a violência. Virou o grande monstro que ameaça a família. O povo grita por socorro. E o Estado, num ato salvacionista, edita a Lei Maria da Penha. Lógico! Como é inadimplente na implementação dos direitos fundamentais, como educação, saúde, moradia, cultura, emprego etc., e, assim, gerador de muitas das mazelas humanas, faz uso de uma de suas atribuições a mais viável economicamente: o processo legislativo e o sistema penal. Ao criar leis, o Estado transmite ao povo carente de direitos fundamentais a sensação de dever cumprido, já que as leis entram em vigor imediatamente e induzem a ilusão de que agora temos leis fortes, que não deixam mais brechas para a impunidade. (…) Não nos escapa que é momento de refletir sobre a crise da masculinidade e da feminilidade. Há dúvida de que a natureza determina de modo tão sumário a diferença entre masculino e feminino. Homem, mulher, masculino e feminino são construções. Efetivamente, muitos de nós criticamos o modelo masculino ou feminino sob o qual fomos criados. Já se sabe atualmente que é possível ser homem sem ser macho e opressor. O desmoronamento dos modelos tradicionais de gênero é mais uma possibilidade do que uma perda. É a possibilidade de mudança. E é esta crise que nos leva à auto-reflexão para a construção de um novo ser humano. Ser humano este não determinado por sua biologia, mas capaz de encontrar livremente a sua própria identidade, o seu ser, tomando o cuidado para não cometer o erro de supor a possibilidade de uma nova síntese, de uma nova identidade estereotipada. (…) Não é possível diante da principiologia democrática constitucionalizada estabelecer modelos de identidade masculina ou feminina. Estereotipar a identidade em masculino e feminino é, no mínimo, discriminatório. Falar em encontrar uma nova identidade masculina ou feminina é um equívoco. É possível apenas refletir sobre a construção da nova identidade do sujeito constitucional no atual Estado Democrático de Direito.”

A REGRA DA OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO PENAL PÚBLICA E AS SUAS EXCEÇÕES NO DIREITO BRASILEIRO.

Artigo do Profº Rômulo Moreira.

Como se sabe, uma das regras aplicadas à ação penal pública é a da obrigatoriedade, expressamente prevista no art. 24 do Código de Processo Penal e no art. 129, I, da Constituição Federal: havendo justa causa (indícios suficientes – e não meros, da autoria e demonstração inequívoca da materialidade da infração penal), estando presentes os pressupostos processuais e as “condições da ação” (como ensinou à Escola Paulista, equivocadamente, Enrico Tulio Liebman), impõe-se (como dever de estado) ao Ministério Público o exercício da ação penal (veja-se o art. 394 do Código de Processo Penal).

Contudo, esta regra comporta três exceções no Direito brasileiro, a saber:

A primeira, trata-se da transação penal, prevista no art. 76 da Lei nº. 9.099/95 (procedimento sumariíssimo para as infrações penais de menor potencial ofensivo – art. 98, I da Constituição Federal).

Com efeito, não tendo tido êxito a composição civil dos danos, ou, ainda que o tenha, tratando-se de ação penal pública incondicionada, será aberta ao Ministério Público oportunidade para a transação penal (art. 76), que é uma proposta de aplicação de pena alternativa à prisão . Este instituto tem sido acoimado por alguns de inconstitucional, entendimento com o qual não concordamos, basicamente, por três motivos: a) A própria Constituição Federal prevê a transação penal no art. 98, I. Adverte Cezar Bittencourt, após afirmar que a Constituição Federal instituiu a transação penal para as infrações penais de menor potencial ofensivo, que a Lei nº. 9.099/95, ao prever a transação penal, “está apenas cumprindo mandamento constitucional.” (ob. cit. p. 55). Rechaçando igualmente a tese da inconstitucionalidade, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho afirma que a transação penal é “uma exceção ditada pela própria Carta, permitindo a aceitação de determinada pena pelo suposto autor do fato, independentemente do processo tradicional.” b) Não há ofensa ao devido processo legal nem ao princípio da presunção de inocência, pois na transação penal não se discute a culpabilidade do autor do fato, ou seja, ele não se declara em nenhum momento culpado, não havendo, tampouco, efeitos penais ou civis, reincidência, registro ou antecedentes criminais (art. 76, §§ 4º. e 6º.). Aqui diferencia-se claramente do plea bargaining (onde se transaciona de maneira ampla sobre a pena, tipo penal, conduta, etc.) e do guilty plea (onde há uma admissão formal da culpa ). c) Não existe nenhuma possibilidade de se aplicar ao autor do fato pena privativa de liberdade, por força da transação penal, pois é absolutamente impossível, à luz do nosso direito positivo, converter-se a pena restritiva de direitos ou a multa transacionada e não cumprida em pena de privação da liberdade (não haveria parâmetro para a conversão no primeiro caso – art. 44, § 4º., CP; e, no segundo caso, porque o art. 182 da Lei de Execuções Penais foi expressamente revogado pela Lei nº. 9.268/96).
Ademais lembremos de Jesús-María Silva Sánchez, segundo o qual haveria um Direito Penal de duas velocidades :

“Uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal ´da prisão`, na qual haver-se-iam de manter rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais; e uma segunda velocidade, para os casos em que, por não tratar-se já de prisão, senão de penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização proporcional a menor intensidade da sanção.”
Para este autor, “seria razoável que em um Direito Penal mais distante do núcleo do criminal e no qual se impusessem penas mais próximas às sanções administrativas (privativas de direitos, multas, sanções que recaem sobre pessoas jurídicas) se flexibilizassem os critérios de imputação e as garantias político-criminais. A característica essencial de tal setor continuaria sendo a judicialização (e a conseqüente imparcialidade máxima), da mesma forma que a manutenção do significado ´penal` dos ilícitos e das sanções, sem que estas, contudo, tivessem a repercussão pessoal da pena de prisão.”
Assim, continua o autor, “na medida em que a sanção não seja a de prisão, mas privativa de direitos ou pecuniária, parece que não teria que se exigir tão estrita afetação pessoal: e a imputação tampouco teria que ser tão abertamente pessoal. A ausência de penas ´corporais` permitiria flexibilizar o modelo de imputação. Contudo, para que atingisse tal nível de razoabilidade, realmente seria importante que a sanção fosse imposta por uma instância judicial penal, de modo que preservasse (na medida do possível) os elementos de estigmatização social e de capacidade simbólico-comunicativa próprios do Direito Penal.”
O acordo feito na esfera penal (se for prestação pecuniária paga à vítima ou a seus dependentes – art. 45, § 1º., CP), terá efeito na esfera cível para se evitar o enriquecimento ilícito, tal como já se prevê na Lei dos Crimes Ambientais (art. 12), no Código Penal (art. 45, § 1º., in fine) e no Código de Trânsito Brasileiro (art. 297, § 3º.).

Neste aspecto, importante ressaltar, em tempos de Justiça Restaurativa, que “a institucionalização dos postulados da Justiça Restaurativa em consonância com os princípios dos Juizados Especiais Criminais tornam o art. 45, § 1.º, do CP a modalidade de pena principal a ser proposta a título de transação penal quando houver pessoa determinada como vítima. (…) Portanto, a proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade ao suposto autor dos fatos quando não existir acordo extintivo da punibilidade na fase preliminar de conciliação merece ser uma pena pecuniária que atenda aos interesses da vítima e, somente no caso de ser inviável esse tipo de proposta, então cabe ao Ministério Público propor alguma outra modalidade de pena a título de transação penal, tendo em vista a concretização do direito fundamental de “acesso à ordem jurídica justa” e ao “tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses”, conforme os paradigmas internacionais da Justiça Restaurativa adotados e preconizados pelo Conselho Nacional de Justiça.”

É perfeitamente possível, em que pese a literalidade do art. 76, a transação penal no caso de contravenção penal, pois seria um verdadeiro absurdo jurídico permitir-se a transação penal para um crime e não para uma contravenção, infração penal, inclusive ontologicamente, de menor potencial ofensivo.

Não admitimos a transação penal nos delitos de ação penal de iniciativa privada (por exemplo: dano simples – art. 163, caput e exercício arbitrário das próprias razões – art. 345, parágrafo único, ambos do Código Penal), pois os arts. 76 e 77, caput e seu § 3º., referem-se apenas ao Ministério Público (o que seria um fundamento mais frágil, reconhecemos), além do que (e então está o mais robusto), em nossa sistemática a vítima não tem interesse na aplicação de uma pena ao autor do fato e sim na reparação civil dos danos . Como afirma José Antonio Paganella Boschi, “o que move o ofendido – a par do inegável sentimento pessoal de ´castigar` o réu pela ofensa – é também o interesse patrimonial na reparação do dano ex delicto, sendo a ele estranhas as finalidades da pena ou do processo.” (grifo nosso). Ademais, caso o ofendido não deseje oferecer queixa poderá não fazê-lo, deixando escoar o prazo decadencial ou renunciando àquele direito. Por este motivo, afastamos também a hipótese da vítima impugnar a decisão homologatória da transação penal, por lhe faltar interesse de agir, visto que a sentença homologatória não gera efeitos civis (art. 76, § 6o.)

A este respeito, interessante a posição de Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, não admitindo a transação penal na ação penal de iniciativa privada:

“Quando a lei confere ao particular a legitimidade para o exercício da ação penal, o faz na condição de substituto processual do Estado, que é o titular da pretensão punitiva. Como se sabe, na legitimação extraordinária o substituto não tem poderes para transacionar com os direitos do substituído. Portanto, o querelante só poderia oferecer transação penal quando houvesse autorização legal. A Lei nº. 9.099/95 não lhe dá tal autorização.”

É de Geraldo Prado a seguinte observação: “Pode-se dizer que mesmo o atual movimento de recuperação de um determinado status penal-processual da vítima, não tem o significado de atribuir a ela o poder de dizer de que forma (prestação de serviços à comunidade, multa?) e em que medida (por três meses, cem dias-multa?) deve o agente ser responsabilizado penalmente. (…) Portanto, a redefinição do espaço da vítima não deve ser confundida com a retomada do caráter privado do processo penal de outras épocas.”

Se a pena de multa for a única aplicável, poderá haver sua redução à metade (art. 76, § 1º.)

A transação penal está condicionada ao preenchimento de determinados requisitos objetivos previstos nos incisos I e II do § 2o. do art. 76, ressalvando-se, quanto ao primeiro inciso, o qüinqüídio referido no art. 64, I do Código Penal; não impede a proposta, outrossim, se a condenação anterior foi substituída por pena restritiva de direitos, multa ou se foi concedido o sursis.

Tendo em vista o princípio da presunção de inocência, o ônus de provar as causas impeditivas é do Ministério Público. Aliás, no Processo Penal o ônus é sempre da acusação, o que torna não recepcionado o art. 156 do Código de Processo Penal (porque fere o devido processo legal e a presunção de inocência). Segundo a lição de Alexandre Bizzotto e Andreia de Brito Rodrigues, “na persecução penal, todo ônus probatório é da acusação.“

Ao lado daqueles requisitos objetivos, exige o inciso III requisitos subjetivos que deverão ser observados antes do oferecimento da proposta.

Atente-se para o fato de que a transação penal só deve ser proposta se não for o caso de arquivamento (faltaria justa causa para a proposta); é o que indica expressamente o caput do art. 76. Aliás, pensamos inclusive que sequer a composição civil dos danos deve ser levada a efeito se o caso, em tese, não for passível, a posteriori, de ser alvo de uma peça acusatória; se o Termo Circunstanciado, por exemplo, narrar um fato atípico ou já atingido pela prescrição o caso é de arquivamento, não devendo sequer ser marcada a audiência preliminar, pois seria submeter o autor do fato a um constrangimento não autorizado por lei. Se, in casu, a vítima desejar a reparação civil que promova no Juízo cível a respectiva ação civil ex delicto. Neste aspecto, discordamos de Cezar Bittencourt que entende ser dispensável o exame da justa causa para a composição civil dos danos, sob o argumento de que “os danos, com ou sem responsabilidade penal, com ou sem responsabilidade objetiva, podem ser compostos, seja na esfera privada, seja, hoje, na esfera criminal” (ob. cit., p. 54). Para nós, caso o Termo Circunstanciado não tenha possibilidade potencial de respaldar uma peça acusatória futura, o pedido de arquivamento impõe-se, pois a máquina judiciária (penal) não pode ser, neste caso, movimentada, ainda mais para se resolver uma questão cível. Se é verdade que hoje os danos podem ser reparados na esfera criminal, não é menos certo que esta hipótese só deve ocorrer se houver crime a perseguir. Caso contrário, o fato deve ser levado ao Juiz Cível. Neste sentido: “A validade da proposta depende da precisa identificação da pessoa a quem o delito deve ser imputado segundo a possibilidade de agir de acordo com o comando normativo. No caso de apuração da prática, em tese, de desobediência a ordem judicial pelos sócios de empresa, deve ser apontada, ainda que sucintamente, a participação de cada um deles no fato delituoso, o que não afronta ao princípio da informalidade que rege a proposta de transação penal. Necessidade de diligências para melhor apurar os indícios de autoria e averiguar a quais sócios caberia, na estrutura da empresa, a responsabilidade pelo eventual descumprimento da ordem judicial. Anulação da proposta de transação penal apresentada. Ressalvada a possibilidade de apresentação de nova proposta. Ordem parcialmente concedida.” (TRF 2ª R. – 1ª T. – HC 2007.02.01.008105-9 – rel. Abel Gomes – j. 16.04.2008 – DJU 24.06.2008).

A natureza jurídica da sentença que acerta a transação penal é homologatória, não sendo sentença condenatória nem absolutória . Tal conclusão chega-se facilmente com a leitura dos parágrafos do art. 76, especialmente os §§ 4º. e 6º., que afirmam não importar reincidência, antecedentes criminais e efeitos civis a aplicação da pena acordada na transação penal.

Por outro lado, a transação penal não representa um direito público subjetivo do autor do fato, mas um ato transacional : o Ministério Público transige quando deixa de oferecer denúncia e o autor do fato quando cede à perspectiva de uma absolvição. Assim, afigura-se-nos equivocada a proposta de transação penal realizada de ofício pelo Juiz que, ao contrário, deve remeter o Termo Circunstanciado ao Procurador-Geral de Justiça se houver recusa injustificada do Ministério Público em fazer a proposta, utilizando-se do art. 28 do Código de Processo Penal, preservando-se, assim, os postulados do sistema acusatório.

Não concordamos com o entendimento segundo o qual a transação é o exercício de uma ação penal. Ora, ação penal sem relação jurídico-processual instaurada? Sem citação? Ação penal sem imputação formal de um crime? Também não poderíamos dizer que se trata de uma ação penal não condenatória (como a revisão criminal ou o habeas corpus), pois esbarraríamos na seguinte questão: como se aplicar uma pena se a ação penal não tinha natureza condenatória? Outra questão: se efetivamente a transação penal é exercício da ação penal, teríamos que admitir o oferecimento de queixa subsidiária caso o Ministério Público não fizesse a proposta.

Exatamente por isso, entendemos que a transação penal é uma mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, tendo em vista que permite ao Ministério Público, ainda que dispondo de indícios da autoria e prova de uma infração penal, abrir mão da peça acusatória, transacionando com o autor do fato.

Neste sentido, veja-se esta decisão do Supremo Tribunal Federal: “SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – PRIMEIRA TURMA – RECURSO EXTRAORDINÁRIO 468.161-7 GOIÁS – RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE – EMENTA: Transação penal homologada em audiência realizada sem a presença do Ministério Público: nulidade: violação do art. 129, I, da Constituição Federal. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal – que a fundamentação do leading case da Súmula 696 evidencia: HC 75.343, 12.11.97, Pertence, RTJ 177/1293 –, que a imprescindibilidade do assentimento do Ministério Público quer à suspensão condicional do processo, quer à transação penal, está conectada estreitamente à titularidade da ação penal pública, que a Constituição lhe confiou privativamente (CF, art. 129, I). 2. Daí que a transação penal – bem como a suspensão condicional do processo – pressupõe o acordo entre as partes, cuja iniciativa da proposta, na ação penal pública, é do Ministério Público.” VOTO: “(…) Bem de ver, assim, que não se reserva, aí, espaço a transação sem participação do MP ( …) Assim, ao contrário do que manifestado na decisão recorrida, o art. 76 (como também o art. 89) da lei nova não se constitui um direito público subjetivo do réu, porém apenas mitiga o princípio da obrigatoriedade da ação penal, ao adotar o princípio da conveniência ou, segundo alguns, o princípio da discricionariedade controlada. A proposta prevista na lei é de exclusivo e inteiro arbítrio do Ministério Público, que continua sendo, por força da norma constitucional, o dominus litis da ação penal pública, não podendo ser substituído pelo magistrado, em tal encaminhamento. Da mesma forma, dizer que o poder consagrado no artigo 129, inciso I, da norma constitucional, não é absoluto, a fim de justificar a possibilidade da transação ser proposta pelo juiz, ante a inércia do Parquet, com a devida vênia, é argumento que não retira ou enfraquece a atribuição privativa ministerial de propor a ação penal pública e consequentemente a transação penal do art. 76 da Lei nº 9.099/95. Isto porque a hipótese de o Ministério Público não propor a transação penal (pois o titular exclusivo para tal ato) não pode, nem de perto, ser equiparada á eventual omissão ou inércia temporal de propor a ação penal pública, que legitimaria admissão da ação privada subsidiária”. De fato, na linha da jurisprudência do Tribunal, que a fundamentação do leading case da súmula 696 evidencia – HC 75.343, 12.11.97, Pertence, RTJ 177/1293 – a imprescindibilidade do assentimento do Ministério Público está conectada estreitamente à titularidade da ação penal pública, que a Constituição lhe confiou privativamente (CF, art. 129, I). Daí que a transação penal – bem como a suspensão condicional do processo – pressupõe o acordo entre as partes, cuja iniciativa da proposta, na ação penal pública, é do Ministério Público.”

Se houver pluralidade de agentes, é evidente que poderá haver a transação com apenas um deles, restando a denúncia para os outros (neste caso ocorre, também, uma certa mitigação ao princípio da indivisibilidade da ação penal pública incondicionada).

Como já foi dito, o cumprimento da pena acordada não gera reincidência, tampouco será indicada em registros criminais ou gerará efeitos civis (§§ 4o. e 6º. do art. 76), sendo registrada apenas para impedir nova transação nos cinco anos subsequentes.

Se houver dissenso entre o autor do fato e o seu defensor prevalecerá a vontade do agente, até por analogia ao disposto no art. 89, § 7º.

Em tese, é possível, à luz dos arts. 43, I e 45, §§ 1º. e 2º. do Código Penal a proposta de transação penal consistente na doação de cestas básicas (como prestação de outra natureza que não a pecuniária). Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal ratificou proposta de transação penal para que um Deputado Federal doasse pessoalmente cestas básicas para uma associação de deficientes visuais e deixasse de responder à denúncia por crime ambiental. A decisão foi unânime. Ele havia sido denunciado (Inq 2721) pelo Ministério Público Federal por, supostamente, ter construído uma barragem no loteamento São Silvestre, em Palmas (TO), sem a devida licença ambiental. Como o crime é de menor potencial ofensivo e ele não tem condenação criminal anterior, o MPF ofereceu proposta de transação penal, que foi aceita pelo Deputado. Pela decisão do Supremo, que homologou a proposta do MPF, ele terá de comparecer pessoalmente uma vez por mês, durante seis meses, na Associação Brasiliense dos Deficientes Visuais (ABDV), em Brasília (DF), para doar 20 cestas básicas e 10 resmas de papel braille. Terá ainda que justificar mensalmente, perante o STF, o cumprimento do acordo. O Deputado pediu para cumprir a pena restritiva de direitos em uma só visita à entidade, mas o MPF foi contra ao afirmar que essa solução não atenderia ao “objetivo da medida”. Ao analisar o pedido do deputado nesta tarde, o relator da matéria, ministro Joaquim Barbosa, avaliou que a alternativa não seria viável. “Considero que a proposta do indiciado, no sentido da doação integral das 120 cestas básicas e 60 resmas de papel braille, em uma única oportunidade, poderia conduzir ao perecimento dos alimentos e até mesmo a problemas para o armazenamento dessa quantidade de alimentos e de papéis. Não é, efetivamente, o ideal”, afirmou Barbosa.

Aqui, porém, faz-se uma ressalva: concordamos com parte da doutrina que proclama a inconstitucionalidade do § 2º. do art. 45 do Código Penal em razão da não observância do princípio da legalidade na expressão “prestação de outra natureza”.

Observa-se que nos crimes previstos no art. 41-B da Lei nº. 10.671/2003 (Estatuto de Defesa do Torcedor) a pena restritiva de direito objeto da transação penal será a “pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de três meses a três anos, de acordo com a gravidade da conduta”, nos termos dos §§ 2º. e 5º. do art. 41-B.

Admissível, outrossim, que a proposta seja feita por Carta Precatória; neste caso, porém, a homologação será no Juízo deprecante, podendo a execução e a fiscalização do cumprimento da sanção realizar-se no Juízo deprecado, obedecendo-se aos princípios do Promotor e do Juiz Natural.

Da decisão homologatória caberá recurso de apelação no prazo de 10 dias; se não homologar, em decisão interlocutória, caberá Mandado de Segurança ou Habeas Corpus, não nos afigurando possível, nesta segunda hipótese, a utilização do recurso de apelação. Não possui a vítima legitimidade para recorrer. Como se sabe, excepcionalmente, o Código de Processo Penal legitima a vítima (ainda quando não habilitada como assistente) a recorrer supletivamente ao Ministério Público, em caso de absolvição (art. 598, parágrafo único); nesta hipótese, permite-se-lhe o recurso especial e mesmo o extraordinário para atacar a decisão proferida naquele recurso interposto, pois não teria sentido dar-lhe legitimidade para a apelação e negar-lhe o direito de recorrer da decisão proferida no julgamento deste recurso (mutatis mutandis, veja-se a Súmula 210 do Supremo Tribunal Federal, in verbis: “O assistente do Ministério Público pode recorrer, inclusive extraordinariamente, na ação penal, nos casos dos arts. 584, § 1.º, e 598 do CPP.”).

Porém, contra a decisão que homologa a transação penal não tem o ofendido legitimidade para apelar, mesmo porque sequer habilitado como assistente poderá estar, visto que a assistência pressupõe ação penal iniciada (art. 268, CPP). Ademais, remetemos o leitor ao que dissemos sobre a impossibilidade de transação penal quando se trata de crime de ação penal de iniciativa privada.

Como ensina Mirabete, “não pode a vítima apelar da decisão homologatória da transação, por falta de interesse de agir. É o que se decidiu no I Congresso Brasileiro de Direito Processual e Juizados Especiais (Tese 6).”

Neste sentido, a jurisprudência é remansosa:

“TACRSP: Recurso – Apelação – Decisão homologatória de transação penal – Irresignação apresentada pela ofendida – Inadmissibilidade – Ausência de interesse em recorrer – Vítima que não está autorizada a intervir neste procedimento ou a ele se opor – Recurso não conhecido. Mesmo que a tentativa de conciliação tenha ficado frustrada, o acordo sobre a aplicação imediata da pena não privativa de liberdade não poderá sofrer qualquer oposição por parte da vítima.” (RJTACRIM 36/270).
“TACRSP: Nos casos da Lei nº. 9.099/95, não tem recurso o ofendido contra a decisão homologatória da transação penal (art. 76), visto lhe falece a pertinência subjetiva da ação, isto é, o interesse de agir. O MP e o autor do fato são os que, unicamente, nesse ponto, têm voz no capítulo.” (RJDTACRIM 41/403).

“TRSC: Transação penal que não comporta a participação da vítima. Homologação da transação impede a possibilidade de deflagração da ação penal. Inexistente a ação penal, não se admite a figura da assistência à acusação, falecendo-lhe legitimidade para interpor recurso de apelação.” (RJTRTJSC 5/219).

Descumprido o acordo entendemos pela impossibilidade de oferecimento de denúncia, pois a sentença homologatória faz coisa julgada material, restando ao Ministério Público a alternativa de executar a sentença homologatória, seja nos termos da Lei de Execução Penal (arts. 147 e 164), seja em conformidade com o Código de Processo Civil, já que se está diante de um título executivo judicial (art. 584, III, CPC). O Supremo Tribunal Federal, no entanto, já decidiu contrariamente, entendendo que o não cumprimento da transação penal autoriza o oferecimento de denúncia, senão vejamos:

“HC 79572 / GO – GOIÁS. HABEAS CORPUS
Relator: Min. MARCO AURÉLIO. Publicação: DJ DATA-22-02-02 PP-00034. EMENT VOL-02058-01 PP-00204. Julgamento: 29/02/2000 – Segunda Turma. Ementa: HABEAS CORPUS – LEGITIMIDADE – MINISTÉRIO PÚBLICO. A legitimidade para a impetração do habeas corpus é abrangente, estando habilitado qualquer cidadão. Legitimidade de integrante do Ministério Público, presentes o múnus do qual investido, a busca da prevalência da ordem jurídico-constitucional e, alfim, da verdade. TRANSAÇÃO – JUIZADOS ESPECIAIS – PENA RESTRITIVA DE DIREITOS – CONVERSÃO – PENA PRIVATIVA DO EXERCÍCIO DA LIBERDADE – DESCABIMENTO. A transformação automática da pena restritiva de direitos, decorrente de transação, em privativa do exercício da liberdade discrepa da garantia constitucional do devido processo legal. Impõe-se, uma vez descumprido o termo de transação, a declaração de insubsistência deste último, retornando-se ao estado anterior, dando-se oportunidade ao Ministério Público de vir a requerer a instauração de inquérito ou propor a ação penal, ofertando denúncia.”

“SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – 13/06/2006 SEGUNDA TURMA – HABEAS CORPUS 88.785-6 SÃO PAULO – RELATOR: MIN. EROS GRAU -. Descumprida a transação penal, há de se retornar ao status quo ante a fim de possibilitar ao Ministério Público a persecução penal (Precedentes). 2. A revogação da suspensão condicional decorre de autorização legal, sendo ela passível até mesmo após o prazo final para o cumprimento das condições fixadas, desde que os motivos estejam compreendidos no intervalo temporal delimitado pelo juiz para a suspensão do processo (Precedentes). Ordem denegada.” VOTO: “A jurisprudência pacífica de ambas as Turmas desta Corte é no sentido de que, descumprida a transação penal, há de se retornar ao status quo ante, possibilitada ao Ministério Público a persecução penal (HHCC 79.572, Marco Aurélio, 1ª Turma, DJ de 22.2.2002; 80.802, Ellen Gracie, 1ª Turma, DJ de 18.5.2001; 84.976, Carlos Britto, 2ª Turma, Informativo n. 402 e o RE 268.320, Octavio Gallotti, 10.11.2000). 2. No que tange à revogação da suspensão condicional do processo, há autorização legal para tanto (cf. art. 89, § 1º, IV, da Lei n. 9.099/95), sendo ela possível até mesmo após o prazo final para o cumprimento das condições fixadas, desde que os motivos estejam compreendidos no intervalo temporal delimitado pelo juiz para a suspensão do processo (cf. os HHCC 80.747, Sepúlveda Pertence, DJ de 19.10.2001; 84.890, Sepúlveda Pertence, DJ de 3.12.2004; 84.660, Carlos Britto, DJ de 25.11.2005 e 84.746, Marco Aurélio, DJ de 31.3.2006). 3. É perfeita a observação, do Subprocurador-Geral da República, de que “[n]ão é demais lembrar que o paciente, por várias vezes beneficiado com os favores legais, quedou-se inerte ao seu cumprimento, sendo esclarecedora a afirmação constante do acórdão impugnado no sentido de que ‘Aliás, o que pretende o combativo defensor é um passaporte para a impunidade. O paciente fez acordo de transação penal e não honrou. Novamente beneficiado com a suspensão condicional do processo não o cumpriu’.” Denego a ordem.”
A homologação de transação penal não elimina a retomada ou a instauração de inquérito ou de ação penal pelo Ministério Público, em caso de descumprimento da transação. Ao reafirmar jurisprudência já estabelecida nesse sentido, o Plenário do Supremo Tribunal negou provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 602072 e determinou o prosseguimento de ação penal pelo MP do Estado do Rio Grande do Sul. O processo foi relatado pelo ministro Cezar Peluso, que se louvou em precedentes do próprio STF para negar provimento ao recurso. O Ministro Marco Aurélio, acompanhando voto do relator, lembrou como precedentes para a decisão o julgamento dos Habeas Corpus (HCs) 80802 e 84876 e do RE 268320.

Tais decisões parece-nos equivocadas, pois se desconstitui uma decisão homologatória de uma forma absolutamente estranha ao nosso ordenamento. A respeito da transação no processo, veja o que ensina Maria Helena Diniz: “A natureza declaratória da transação, dando certeza a um direito precedentemente litigioso ou duvidoso, decorre de sua equiparação aos efeitos da coisa julgada (art. 1.030, CC). Se a decisão de homologação é válida e se a transação judicial é vinculante e irrevogável, só pode haver distrato da transação antes da homologação. (Vide: Pontes de Miranda, Tratado, cit. t. 25, p. 139). A sentença homologatória de transação válida é ato jurídico processual transparente; logo, não pode ficar à mercê de quaisquer ataques infundados por ter força de decisão irrevogável. Não há como desconstituir transação que não esteja eivada de vício de nulidade ou anulabilidade.”

Cezar Roberto Bittencourt, criticando duramente esta decisão, afirma que “títulos judiciais somente podem ser desconstituídos observadas as ações e os procedimentos próprios. A coisa julgada tem uma função político-institucional: assegurar a imutabilidade das decisões judiciais definitivas e garantir a não-eternização das contendas levadas ao Judiciário. (…) Afinal, desde quando um título judicial pode desconstituir-se pelo descumprimento da obrigação que incumbe a uma das partes? Não há nenhuma previsão legal excepcional autorizando esse efeito especial. (…) na verdade, títulos judiciais têm exatamente a função de permitir sua execução forçada, quando não forem cumpridos voluntariamente. E, conclui: “quando houver descumprimento de transação penal dever-se-á proceder à execução forçada, exatamente como se executam as obrigações de fazer.” (ob. cit., pp. 17, 19 e 25).

Na esteira do entendimento do Supremo, assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS Nº 11.398 – SP (2001/0056971-3) (DJU 12.11.01, SEÇÃO 1, P. 159, J. 02.10.01). RELATOR: MINISTRO JOSÉ ARNALDO DA FONSECA. É possível o oferecimento da denúncia por parte do órgão Ministerial, quando descumprido acordo de transação penal, cuja homologação estava condicionada ao efetivo pagamento do avençado. O simples acordo entre o Ministério Público e o réu não constitui sentença homologatória, sendo cabível ao Magistrado efetivar a homologação da transação somente quando cumpridas as determinações do acordo. Recurso desprovido.”

Também o Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “A sentença homologatória da transação penal gera a eficácia de coisa julgada formal e material, obstando, no caso de descumprimento do acordo pelo autor do fato, a retomada da ação penal pelo Ministério Público ou a conversão de prestação pecuniária em pena privativa de liberdade, restando ao órgão acusatório apenas promover a execução do título judicial perante o Juizado Especial Criminal, nos termos do art. 51 do CP” (TJMG – 2ª C. – HC 1.0000.08.487886-7/000(1) – REL. Vieira de Brito – j. 29.01.2009 – DOE 10.02.2009).

Nada impede, muito pelo contrário, que a transação penal seja realizada ainda que se trate de feito envolvendo suposto autor do fato com prerrogativa de foro. Neste sentido, o Ministro Celso de Mello, determinou a notificação de um Deputado Federal para que se manifeste sobre seu interesse em aceitar transação penal proposta pelo procurador-geral da República nos autos do Inquérito (INQ) 2793. O parlamentar foi indiciado perante o STF pelo delito de desacato, crime previsto no artigo 331 do Código Penal e cuja pena varia de seis meses a dois anos de detenção – infração de menor potencial ofensivo, conforme prevê o artigo 61 da Lei 9.099/1995. Ao estabelecer que o deputado se manifeste sobre a proposta, em até dez dias, o Ministro Celso de Mello lembrou que a aceitação do benefício deve ser pessoalmente assumida pelo próprio interessado, além de subscrita por seu advogado. Lembrou, ainda, que o Plenário da Corte já se pronunciou no sentido de ser cabível a transação penal nos processos penais originários instaurados no Supremo. O decano explicou que a transação penal é um processo técnico de despenalização, previsto na Lei 9.099/1995, resultante da expressiva transformação do panorama penal vigente no Brasil, e tem como razão de ser a “deliberada intenção do Estado de evitar, não só a instauração de processo penal, mas, também, a própria imposição de pena privativa de liberdade, quando se tratar, como sucede na espécie, de infração penal revestida de menor potencial ofensivo”.

Por fim, ressaltamos que o art. 27 da Lei nº. 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais) prescreve que a transação penal somente poderá ser formulada desde que tenha havido prévia composição do dano ambiental, salvo em caso de comprovada impossibilidade.

Uma segunda exceção reside na Lei nº. 12.529/2011: Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e Prevenção e Repressão às Infrações Contra a Ordem Econômica.

No seu art. 86, estabelece-se que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica poderá celebrar acordo de leniência com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, “desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: I – a identificação dos demais envolvidos na infração; e II – a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação”.

Tal acordo, segundo o art. 87 da mesma lei, nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Código Penal, “determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência.”

Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade nos referidos crimes.
Como terceira exceção, faz-se referência à Lei nº. 12.850/2013, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas (crime e contravenção penal) e o procedimento criminal a ser aplicado, além de alterar o Código Penal e revogar expressamente a Lei nº. 9.034/95.

Segundo esta norma legal, “o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.”
Obviamente que não se revogou implicitamente a Lei nº. 9.807/99, que criou o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, pois a nova lei trata apenas de autores envolvidos em organização criminosa (com a sua definição específica), restando para os demais casos a Lei. nº. 9.807/99. Temos, inclusive, que esta lei de proteção a vítima e testemunhas pode ser utilizada subsidiariamente, sempre que houver qualquer lacuna na nova lei (art. 3º., CPP).
Continuando, estabelece-se que “em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração.” A depender da importância da delação premiada, “o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).” Criou-se uma nova causa de suspensão do prazo prescricional, sempre que o prazo para oferecimento de denúncia ou o processo, relativos ao colaborador, for suspenso por até seis meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração.

O Ministério Público poderá (poder-dever) deixar de oferecer denúncia se o colaborador não for o líder da organização criminosa ou se for o primeiro a prestar efetiva colaboração. Concordamos inteiramente com mais esta exceção à regra da obrigatoriedade, cabendo a utilização de habeas corpus caso o Ministério Público insista no oferecimento da peça acusatória e o Juiz a receba. Não faz nenhum sentido denunciar alguém quando se sabe de antemão que será, na sentença final, beneficiado pelo perdão judicial e, consequentemente, com a extinção da punibilidade (art. 107, IX do CP). Faltaria ao Ministério Público uma das condições para o exercício da ação penal (o interesse de agir, sob o aspecto da utilidade).
Ainda que a colaboração seja posterior à sentença, dispõe a lei que “a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos.” Logo, até na fase do processo de execução penal, poderá o delator ser beneficiado, ao menos com a progressão de regime.

Para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o Delegado de Polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor, não participará o Juiz das negociações realizadas. Ainda bem, pois se isso fosse possível incidiria, desgraçadamente, o art. 83 do CPP (prevenção – ver abaixo).

Após o acordo, deverá ser lavrado termo, “acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor. O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto.” E apenas nestas hipóteses.

“Depois de homologado o acordo, o colaborador poderá, sempre acompanhado pelo seu defensor, ser ouvido pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia responsável pelas investigações.“ Ademais, “as partes (?) podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.” Este advérbio deve ser interpretado à luz da CF/88, ou seja, o conteúdo do acordo nunca poderá ser utilizado contra o delator. É o direito de não autoincriminação, previsto no art. 8º., do Pacto de São José da Costa Rica.
Este termo de acordo da colaboração premiada deverá ser feito por escrito e conterá o relato da colaboração e seus possíveis resultados; as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia; a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; as assinaturas do representante do Ministério Público ou do delegado de polícia, do colaborador e de seu defensor; a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, quando necessário.
O pedido de homologação do acordo será sigilosamente distribuído, contendo apenas informações que não possam identificar o colaborador e o seu objeto. As informações pormenorizadas da colaboração serão dirigidas diretamente ao Juiz a que recair a distribuição, que decidirá no prazo de quarenta e oito horas e o acesso aos autos será restrito ao Juiz, ao Ministério Público e ao Delegado de Polícia, como forma de garantir o êxito das investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial (o que macula o Enunciado da Súmula Vinculante 14), ressalvados os referentes às diligências em andamento. O acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia, mesmo porque o colaborador terá os seguintes direitos: “usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica; ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados; ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes; participar das audiências sem contato visual com os outros acusados; não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito; cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados.” Além disso, todos os atos processuais são públicos, segundo o conhecido mandamento constitucional, com as ressalvas previstas na Carta Magna.

Continuando, afirma a lei que “ainda que beneficiado por perdão judicial ou não denunciado, o colaborador poderá ser ouvido em juízo a requerimento das partes ou por iniciativa da autoridade judicial. Sempre que possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações.”

Eis agora uma das maiores inconstitucionalidades na legislação brasileira: “nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.” (grifo nosso). Ora, onde já se viu o dever, a imposição de renunciar a um direito constitucionalmente declarado. Óbvio que esta disposição só pode ter saído de uma mente em desvario. Claro que o direito ao silêncio é renunciável, voluntária e espontaneamente, jamais imposto. Mais uma vez, valendo-se de uma interpretação à luz da CF/88, deve-se ler este teratológico dispositivo da seguinte maneira: nos depoimentos que prestar, o colaborador poderá renunciar, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio. Somente assim, estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.

Respeitando-se o devido processo legal, estabelece-se que “em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor.” Que novidade!
Afirma-se, também, que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.” Aqui vale as observações feitas acima, ou seja, a sentença condenatória nunca poderá ter como único fundamento a delação, mesmo porque na maioria das vezes tratar-se-á de mero ato investigatório e, portanto, de nenhum valor probatório.

A propósito da delação premiada e “no espectro do recrudescimento da legislação processual penal, visto como um reflexo da expansão tresloucada da cultura da emergência, ganhou vigor a figura da delação premiada, sobretudo com a sua propagação no processo criminal italiano e estadunidense.”

Segundo Damásio de Jesus, “a origem da “delação premiada” no Direito brasileiro remonta às Ordenações Filipinas, cuja parte criminal, constante do Livro V, vigorou de janeiro de 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830. O Título VI do “Código Filipino”, que definia o crime de “Lesa Magestade” (sic), tratava da “delação premiada” no item 12; o Título CXVI, por sua vez, cuidava especificamente do tema, sob a rubrica “Como se perdoará aos malfeitores que derem outros á prisão” e tinha abrangência, inclusive, para premiar, com o perdão, criminosos delatores de delitos alheios.”
Já na Inquisição, “um filho delator não incorre nas penas fulminadas por direito contra os filhos dos hereges e este é o prêmio pela sua delação. In proemium delationis.”
Alguns doutrinadores costumam distinguir a delação como aberta ou fechada, aduzindo que naquela primeira o delator aparece e se identifica, inclusive favorecendo-se de alguma forma com o seu gesto, seja na redução da pena, seja no recebimento de recompensa pecuniária ou mesmo com o perdão judicial; nesta, ao contrário, o delator se assombra no manto do anonimato “propiciando auxílio desinteressado e sem qualquer perigo“, como assevera Paulo Lúcio Nogueira.

Afora questões de natureza prática como, por exemplo, a inutilidade, no Brasil, desse instituto por conta, principalmente, do fato de que o nosso Estado não tem condições de garantir a integridade física do delator criminis nem a de sua família, o que serviria como elemento desencorajador para a delação, aspectos outros, estes de natureza ético-moral informam a profunda e irremediável infelicidade cometida mais uma vez pelo legislador brasileiro, muito demagogo e pouco cuidadoso quando se trata dos aspectos jurídicos de seus respectivos projetos de lei.

Sem dúvidas, “o tema da delação premiada desafia diversos questionamentos: desde sua conveniência político-criminal, passando por sua apreciação sob o ponto de vista da quebra da ética ínsita ao proceder dentro de um Estado Democrático de Direito, ou pelas questões relativas ao seu valor probatório(1), até sua natureza jurídico-penal, sua função processual penal e as implicações daí decorrentes para o postulado do devido processo legal em nosso direito positivo. Nesta oportunidade, passaremos os olhos por estes três últimos aspectos quanto à delação que tem por objeto a identificação dos demais coautores ou partícipes.” Como diz Hassemer, “não é permitido ao Estado utilizar os meios empregados pelos criminosos, se não quer perder, por razões simbólicas e práticas, a sua superioridade moral.”

Também a propósito, veja-se a opinião de João Baptista Herkenhoff: “A meu ver, a delação premiada associa criminosos e autoridades, num pacto macabro. De um lado, esse expediente pode revelar tessituras reais do mundo do crime. Numa outra vertente, a delação que emerge do mundo do crime, quando falsa, pode enredar, como vítimas, justamente aquelas pessoas que estejam incomodando ou combatendo o crime. Na maioria das situações, creio que o uso da delação premiada tem pequena eficácia, uma vez que a prova relevante, no Direito Penal moderno, é a prova pericial, técnica, científica, e não a prova testemunhal e muito menos o testemunho pouco confiável de pessoas condenadas pela Justiça. Ao premiar a delação, o Estado eleva ao grau de virtude a traição. Em pesquisa sócio-jurídica que realizamos, publicada em livro, constatei que, entre os presos, o companheirismo e a solidariedade granjeiam respeito, enquanto a delação é considerada uma conduta abjeta (Crime, Tratamento sem Prisão, Livraria do Advogado Editora, página 98). Então, é de se perguntar: Pode o Estado ter menos ética do que os cidadãos que o Estado encarcera? Pode o Estado barganhar vantagens para o preso em troca de atitudes que o degradam, que o violentam, e alcançam, de soslaio, a autoridade estatal?”
Se considerarmos que a norma jurídica de um Estado de Direito é o último refúgio do seu povo, no sentido de que as proposições enunciativas nela contidas representam um parâmetro de organização ou conduta das pessoas (a depender de qual norma nos refiramos se, respectivamente, de segundo ou primeiro graus, no dizer de Bobbio), definindo os limites de suas atuações, é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada em flagrante incitamento à transgressão de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo.

Que não se corra o perigo, já advertido e vislumbrado pelo poeta Dante Alighieri, lembrado por Miguel Reale quando afirma que o “Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a.“

Diante dessa sombria constatação, como se pode exigir do governado um comportamento cotidiano decente, se a própria lei estabelecida pelos governantes permite e galardoa um procedimento indecoroso? Como fica o homem de pouca ou nenhuma cultura, ou mesmo aquele desprovido de maiores princípios, diante dessa permissividade imoral ditada pela própria lei, esta mesma lei que, objetiva e obrigatoriamente, tem de ser respeitada e cumprida sob pena de sanção? Estamos ou não estamos diante de um paradoxo? Como afirma Paulo Cláudio Tovo, “a delação premiada de comparsa nos parece uma violação ética com perigosas conseqüências no mundo do crime (…). Este não é o verdadeiro caminho da Justiça, importa, isto sim, na confissão que o Estado não tem capacidade científica de chegar à verdade.”
É certo que em outras legislações, inclusive em países desenvolvidos economicamente (embora possuidores de uma sociedade em desencanto, como, por exemplo, a americana), a figura da delatio já existe há algum tempo (diga-se de passagem, assegurando-se inquestionavelmente a vida do denunciante), como ocorre nos Estados Unidos (bargain) e na Itália (pattegiamento), entre outros países. São exemplos, contudo, que não deveriam ser seguidos, pois desprovidos de qualquer caráter moral ou ético, como já acentuamos.

Tão-somente para se argumentar, pode-se dizer que o bem jurídico visado pela delação (a segurança pública), justificaria a sua utilização, ou, em outras palavras, o fim legitimaria o meio. Ocorre que tal princípio é de todo amoralista, aliás, próprio do sistema político defendido pelo escritor e estadista florentino Niccolò Machiavelli (1469-1527), sistema este dito de um realismo satânico, na definição de Frederico II em seu Antimaquiavel, tornando-se sinônimo, inclusive, de procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro, etc., etc…

O próprio Rui Barbosa já afirmava não se dever combater um exagero (no caso a violência desenfreada) com um absurdo (a delação premiada).

Em um artigo intitulado “Prêmio para o ´dedo duro`, o advogado mineiro Tarcísio Delgado afirmou com muita propriedade: “Contam uma história muito conhecida, aconteceu há muitos e muitos anos e, de geração em geração, tão sagrada e consagrada, que estabeleceu o mais importante marco no caminho da humanidade. Trata-se da saga de um “Sujeito”, altamente perigoso, indisciplinado e subversivo, que andava atormentando e tirando o sono do Poder Soberano. O “Cara” não era mole, dizia defender os fracos e os oprimidos. Fazia até milagre. Formou uma “quadrilha” de seguidores fanáticos, e andava com seu “bando”, infernizando o Poder constituído. Não respeitava nem o Imperador. Era uma ameaça permanente às instituições. “Pior” que “Esse”, nunca se viu. Precisava pegá-lo, mas ele era “danado”, se misturava no meio do povo, e não tinha como prendê-lo. Preso, o castigo seria severo e inapelável. Eis que aparece a figura canhestra do delator, para “colaborar” com a polícia e com os detentores do Poder. Um dos seus vende-se por trinta dinheiros e articula a prisão do chefe: “O traidor tinha combinado com eles um sinal, dizendo: Jesus é aquele que eu beijar; prendam” (Mateus, 26, 48). Estava consumada a mais famosa e repugnante traição de todas as épocas. Judas se transformou em sinônimo de traidor. Podemos fixar aqui a origem da delação premiada, que se confunde com o nascimento de nossa Era. Este famigerado instituto tem vida recente em nosso Direito. Importado dos Estados Unidos e da Itália, que o recepcionam com grande entusiasmo, foi positivado em nosso País, pela Lei nº 8.072/ 90, art.8º, § único – O participante que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços). O art.159, do Código Penal, no seu § 4º, estabelece coisa parecida. Como esta legislação contraria a natureza de nossos sentimentos, nossas tradições e a formação de nossa cultura, permaneceu durante esses anos como letra morta, sem qualquer aplicação noticiada. Só agora, recentemente, foi, imprópria e equivocadamente, cogitada. (…) Faz quase 60 anos, lembro-me muito bem, quando cursava o primeiro grau, certa feita nossa professora enérgica e diligente, magnífica mestra, que saudade!… surpreendeu um grupo de alunos com um caso grave de indisciplina que, embora praticada por um só, não havia como identificá-lo, sem que houvesse confissão. O indisciplinado calou-se. A professora ameaçava punir o grupo inteiro, se não aparecesse o responsável. Eis que surge o “dedo duro” e delata o colega, apontando aquele dedo de “bom moço” para o culpado. Aquela mestra exemplar passou-lhe uma descompostura. Disse que a indisciplina mais grave praticara o delator do seu colega. Aplicou-lhe a penalidade mais forte, e ensinou que nunca mais deveria dedurar quem quer que fosse. O resto daquela aula foi sobre o papel sujo e condenável de delatar. Esta foi uma lição que me marcou para sempre. (…) Por estas e por outras, tenho fundadas e irremovíveis restrições à chamada delação premiada. Repugna-me o acordo de autoridade instituída com bandidos. Parece-me mais um comodismo de quem tem o dever de investigar, uma redução de trabalho, um falso pragmatismo utilitarista, que encontra utilidade numa prática que corrompe e avilta. O argumento de que os criminosos modernos dispõem de técnicas e arranjos difíceis de serem apanhados, nada mais é do que a confissão de que o Estado está perdendo uma batalha que não pode perder, sob pena do desmantelamento total da organização social. Pegar um acusado, sem qualquer culpa formada, no início da apuração de possíveis atos criminosos, prendê-lo, algemá-lo e oferecer-lhe o benefício da “deduragem” é de arrepiar os cabelos. Os momentos em que prevaleceu o crédito à delação não enaltecem a história, pelo contrário, são períodos soturnos no caminho da humanidade. A delação mais conhecida é aquela que está na origem de nossa Era, resumidamente descrita na introdução deste artigo. Aí, os personagens são nominados, a vítima foi simplesmente Jesus Cristo e, o delator, aquele que virou sinônimo de traidor, Judas Iscariote. Todavia, a história universal está repleta de exemplos tenebrosos de milhares de pessoas inocentes e anônimas que, por causa da delação, foram queimadas vivas nas fogueiras da inquisição; levadas à guilhotina para serem decapitadas depois da Tomada da Bastilha nos anos que se seguiram à Revolução Francesa. Além disso, na Rússia do comunismo Stalinista, por um canto, e no Nazismo Hitlerista, por outro, a delação desempenhou papel absolutamente fundamental. E não citamos, ainda, o caso clássico e típico de delação premiada, que marca a história pátria com sangue e vergonha, daquele que delatou o “bando perigosíssimo” comandado por aquele desvairado de amor à Pátria, Tiradentes, na Inconfidência Mineira – o fraco e pusilânime Joaquim Silvério dos Reis, em troca de vantagens pessoais. A história registra incontáveis casos de delação que, sem nenhuma exceção, marcam sempre os momentos mais obscuros e vergonhosos da humanidade. Só quem não quer ver, em virtude de uma formação utilitarista, não reconhece que a delação sempre foi um instrumento do autoritarismo, da violência, da injustiça. Está na teoria que justifica os meios pelo fim e, ainda assim, no caso, impropriamente, porque, aqui, por meios corrompidos, quase sempre se chega a fim distorcido e injusto. “A árvore má não dá bons frutos”. Enganam-se os que buscam tirar proveito de quem só pensa em se aproveitar. A prova não pode fundar-se no testemunho daquele que antes fora pego como comparsa do crime. Sua palavra é suspeita e inconfiável. Todo delator, para amenizar sua situação no processo, joga a culpa no outro, seu comparsa ou não. Não é de se acolher, também, o argumento dos defensores da adoção deste instituto jurídico, de que hoje ele é aplicado com tais cautelas que impossibilitariam qualquer abuso contra inocentes. Claro que, em nossos dias, a delação não levaria ninguém à fogueira ou à guilhotina, mas pode criar constrangimentos e danos morais, ferir direitos inalienáveis, que precisam ser respeitados numa sociedade civilizada e livre, durante o processo investigatório, isto para admitir, o que não é nosso caso, alguma utilidade ou alguma força moral na aplicação dessa norma positiva. É aconselhável que, em se tratando de assuntos desse nível de especulação e com tantas manifestações do pensamento universal, procure-se exemplares na vasta doutrina existente. André Comte-Sponville, desculpando-se por citar poucos, trabalha com conceitos de Kant, Bérgson, Camus, Dostoievski, Jankélévitch para indagar e responder: “se para salvar a humanidade fosse preciso condenar um inocente (torturar uma criança, diz Dostoievski), teríamos de nos resignar e fazê -lo? Não, respondem eles. A cartada não valeria o jogo, ou antes, não seria uma cartada, mas uma ignomínia. Porque, se a justiça desaparece, é coisa sem valor o fato de os homens viverem na Terra. O utilitarismo chega aqui ao seu limite. Se a justiça fosse apenas um contrato de utilidade, apenas uma otimização do bem-estar coletivo, poderia ser justo, para a felicidade de quase todos, sacrificar alguns, sem seu acordo e ainda que fossem perfeitamente inocentes e indefesos”, e avança, utilizando-se ainda de Kant e Rawls: “a justiça é mais e melhor do que o bem estar e a eficácia, e não poderia ser sacrificada a eles, nem mesmo em nome da felicidade da maioria”. Estes conceitos, certamente, soam como devaneios aos “idiotas da objetividade”, de Nelson Rodrigues, mas, só assim, poderemos “criar uma sociedade de Homens, não de brutos”, como acentua Spinoza. Premiar o delator é premiar o crime.” Fonte: JURID Publicações Eletrônicas – 06/09/2005.

Em crônica publicada no jornal O Globo, na edição do dia 17 de dezembro de 1995, João Ubaldo Ribeiro, após lembrar que as expressões “dedo-duro” e “dedurismo” surgiram ou generalizaram-se após o golpe militar de 1964, escreveu:

“Os próprios militares e policiais encarregados dos inquéritos tinham desprezo pelos dedos-duros – como, imagino, todo mundo tem, a não ser, possivelmente, eles mesmos. E, superado aquele clima terrível seria de se esperar que algo tão universalmente rejeitado, epítome da deslealdade, do oportunismo e da falta de caráter, também se juntasse a um passado que ninguém, ou quase ninguém, quer reviver. Mas não. O dedurismo permanece vivo e atuante, ameaçando impor traços cada vez mais policialescos à nossa sociedade.” E, conclui: “Sei que as intenções dos autores da idéia são boas, mas sei também que vêm do desespero e da impotência e que terminam por ajudar a compor o quadro lamentável em que vivemos, pois o buraco é bem, mas bem mesmo, mais embaixo.”

Entendemos que o aparelho policial do Estado deve se revestir de toda uma estrutura e autonomia, a fim de poder realizar seu trabalho a contento, sem necessitar de expedientes escusos na elucidação dos delitos. O aparato policial tem a obrigação de, por si próprio, valer-se de meios legítimos para a consecução satisfatória de seus fins não sendo necessário, portanto, que uma lei ordinária use do prêmio ao delator (crownwitness), como expediente facilitador da investigação policial e da efetividade da punição.

Ademais, no próprio Código Penal já existe a figura da atenuante genérica do art. 65, III, b, onde a pena será sempre atenuada quando o agente tiver “procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano”, que poderia muito apropriadamente compensar (por assim dizer) uma atitude do criminoso no auxílio à autoridade investigante ou judiciária.

Além da atenuante referida há o instituto do arrependimento eficaz que, igualmente, beneficia o agente quando este impede voluntariamente que o resultado da execução do delito se produza, fazendo-o responder, apenas, pelos atos já praticados (art. 15 do Código Penal).
Pode-se, ainda, referir-se ao preceito do art. 16, arrependimento posterior, bem verdade que este limitado àqueles crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, mas, da mesma forma, compensador de uma atitude favorável por parte do delinquente, reduzindo-lhe a pena.
Vê-se, destarte, que o ordenamento jurídico existente e consubstanciado no Código Penal já permitia beneficiar o réu em determinadas circunstâncias, quando demonstrasse “menor endurecimento no querer criminoso, certa sensibilidade moral, um sentimento de humanidade e de justiça que o levam, passado o ímpeto do crime, a procurar detê-lo em seu processo agressivo ao bem jurídico, impedindo-lhe as consequências”, como já acentuou o mestre Aníbal Bruno. Não necessita, portanto, o legislador, em lei extravagante, vir a prever a delação premiada, como causa de diminuição da pena. Também por isso é inoportuno.

A traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos. A lei, como já foi dito, deve sempre e sempre indicar condutas sérias, moralmente relevantes e aceitáveis, jamais ser arcabouço de estímulo a perfídias, deslealdades, aleivosias, ainda que para calar a multidão temerosa e indefesa (aliás, por culpa do próprio Estado) ou setores economicamente privilegiados da sociedade (no caso da repressão à extorsão mediante sequestro).
Em nome da segurança pública, falida devido à inoperância social do Poder e não por falta de leis repressivas, edita-se um sem número de novos comandos legislativos sem o necessário cuidado com o que se vai prescrever.

Repita-se uma observação de Damásio de Jesus:

“A polêmica em torno da “delação premiada”, em razão de seu absurdo ético, nunca deixará de existir. Se, de um lado, representa importante mecanismo de combate à criminalidade organizada, de outro, parte traduz-se num incentivo legal à traição. A nós, estudiosos e aplicadores do Direito, incumbe o dever de utilizá-la cum grano salis, notadamente em razão da ausência de uniformidade em seu regramento. Não se pode fazer dela um fim em si mesma, vale dizer, não podem as autoridades encarregadas da persecução penal contentarem-se com a “delação”, sem buscar outros meios probatórios tendentes a confirmá-la.”
Incita-se, então, à traição, este mal que já matou os conjurados delatados pelo crápula Silvério dos Reis; que levou Jesus à cruz por conta da fraqueza de Judas e deu novo alento aos invasores holandeses graças à ajuda de Calabar.
Esses traidores históricos, e tantos outros poderiam ser citados, são símbolos do que há de pior na espécie humana; serão sempre lembrados como figuras desprezíveis. Advirta-se, que não estamos a fazer comparações, pois sequer são neste caso cabíveis. Apenas tencionamos mostrar a nossa indignação com a utilização da ordem jurídica como instrumento incentivador da traição, ainda que se traia um sequestrador, um latrocida ou um estuprador.

Não podemos nos valer de meios esconsos, em nome de quem quer que seja ou de qualquer bem, sob pena, inclusive, de sucumbirmos à promiscuidade da ordem jurídica corrompida. Esta nossa posição, sem sombra de dúvidas, sofre forte contestação; de toda maneira, valhemo-nos da lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, segundo a qual “autores sofrem o peso da falta de respeito pela diferença (o novo é a maior ameaça às verdades consolidadas e produz resistência, não raro invencível), mas têm o direito de produzir um Direito Processual Penal rompendo com o saber tradicional, em muitos setores vesgo e defasado (…).”

“Em verdade te digo que hoje, nesta noite, antes que duas vezes cante o galo, tu me negarás três vezes”

Ausência de intimação pessoal da Defensoria Pública é causa de nulidade de acórdão

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão unânime, concedeu habeas corpus em favor de condenado pelo crime de roubo, em razão da ausência de intimação pessoal da Defensoria Pública para comparecer à sessão de julgamento da apelação. O relator é o ministro Og Fernandes.

A defesa do acusado sustentou que o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) seria nulo por não ter sido intimada a Defensoria Pública para comparecer ao referido julgamento. Alegou ainda que os fundamentos utilizados para o aumento da pena-base configurariam constrangimento ilegal, pois o condenado não possui qualquer condenação definitiva contra si. Também defendeu que o condenado faria jus a iniciar o cumprimento da pena em regime semiaberto, baseando-se no dispositivo do Código Penal segundo o qual o condenado não reincidente – cuja pena seja superior a quatro anos e não exceda oito anos – poderá, desde o início, cumpri-la em regime semiaberto.

O STJ levou em conta a prerrogativa de intimação pessoal do defensor público em todos os atos do processo, a qual está assegurada pela Lei n. 1.060/1950, que estabelece normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados.

O ministro Og Fernandes salientou, em seu voto, que “o art. 5º, § 5º, da Lei n. 1.060/50 estabelece que é prerrogativa da Defensoria Pública, ou de quem exerça cargo equivalente, a intimação pessoal de todos os atos do processo, em ambas as instâncias, sob pena de nulidade absoluta por cerceamento de defesa”.

No entendimento do relator, “a ausência de intimação da defesa – que não pode ser suprida com a simples publicação na imprensa oficial – preteriu direito garantido ao réu”, que seria o de se ver devidamente representado durante o julgamento de seu recurso de apelação.

Quanto aos demais pedidos da defesa, que visavam à redução da pena, o relator entendeu estarem estes prejudicados, pois os pontos alegados devem ser objeto de verificação pelo tribunal de origem quando se detiver a analisar o recurso da defesa em novo julgamento da apelação.

O STJ concedeu o habeas corpus para que, intimada a Defensoria Pública, seja novamente julgada a apelação pelo TJSP.

AMB divulga nota pública contra afastamento de magistrado mineiro

A AMB, entidade que congrega quase 14 mil juízes em todo o país, através de decisão unânime do Conselho Geral de Representantes da entidade, vem a público externar preocupação com a postura do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no episódio em que decidiu pelo afastamento temporário do magistrado mineiro Edilson Rumbelsperger Rodrigues, da Comarca de Sete Lagoas, notadamente por suas decisões judiciais. 

A AMB não questiona a necessidade de qualquer providência que deva ser tomada contra qualquer juiz desse país, mas que seja feita pelo respectivo órgão competente, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, observados os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, que são assegurados a todo cidadão brasileiro. 

É preciso que todos os casos de possível desvio de conduta que envolvam magistrados sejam apurados com absoluta transparência e devido rigor, mas sempre pelo órgão legitimamente competente, observadas as garantias constitucionais. 

A quebra desses princípios pétreos da Carta da República não só fragiliza o Poder Judiciário como um todo, vulnera a segurança jurídica da sociedade brasileira e arranha a solidez do Estado Democrático de Direito. 

Aracaju (SE), 11 de novembro de 2010. 

Mozart Valadares Pires,

 Presidente da AMB

Usurpação de função pública só ocorre com dolo e para benefício próprio

 O crime de usurpação de função pública só se efetiva se o agente atua com dolo e para obter benefício próprio. Se o benefício é exclusivo da Administração, não ocorre o delito. A decisão é da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que trancou a ação penal contra delegado de polícia paranaense acusado de permitir que servidor comissionado atuasse como policial civil. O julgamento terminou empatado, o que levou ao provimento do recurso em habeas corpus.

Segundo o desembargador convocado Celso Limongi, a atuação do comissionado não se deveu ao delegado, mas à “promiscuidade dos cargos criados pelo próprio Estado-Administração, com funções assemelhadas à de delegado de polícia, e à própria denominação dos cargos”.

De acordo com o relator, o comissionado atuava há anos em diferentes unidades da Polícia Civil paranaense, ocupando cargos sucessivamente renomeados, com funções próximas às de policiais. Em janeiro de 2002, nova lei alterou o regime para proibir que os, a partir de então, denominados “agentes administrativos” exercessem atividades de autoridade policial. Mas o comissionado seguiu desempenhando as atribuições a que estava habituado até abril do mesmo ano.

“O Executivo, tradicionalmente, se ressente de condições financeiras para manter a estabilidade de seu quadro de funcionários, incluindo, aí, o quadro de delegados de polícia. Disso resulta a improvisação”, afirma o relator. “À falta de administração técnica, improvisa-se, e aquilo que era para ser temporário, torna-se permanente e, com isso, os serviços vão deteriorando-se cada vez mais”, completa.

Para o desembargador convocado, o delegado, acusado de coautoria do crime de usurpação, nem mesmo colaborou com o comissionado para os atos. Segundo ele, havia uma situação de fato, e não criada por ele.

Coordenadoria de Editoria e Imprensa

Fonte : STJ

O crime de Usurpação de função pública está previsto no CP: Art.328. Usurpar o exercício de função pública. Pena – Detenção, de três meses a dois anos e multa. Parágrafo Único: Se do fato o agente aufere vantagem. Pena – Reclusão, de dois a cinco anos e multa.

Embora seja um delito previsto no capítulo dos crimes praticados por funcionários públicos a repressividade deste tipo é destinada ao particular quando este pratica tal ilícito contra a administração em geral, conquanto, o próprio funcionário público possa também ser autor ou co-autor do crime.

Usurpar que é derivado do latim USURPARE, significa apossar-se sem ter direito. Usurpar a função pública é, portanto, exercer ou praticar ato de uma função que não lhe é devida, em detrimento da administração e com proveito próprio.

A punição se dá quando alguém toma para si, indevidamente, uma função pública alheia, praticando algum ato ou vontade correspondente, entretanto, a função usurpada há de ser absolutamente estranha ao usurpador para a configuração do crime. Acertada a decisão do STJ ao inadmitir a conduta sem aprova do prejuízo em detrimento da administração, é que o sujeito passivo não pode ser o beneficiário da conduta como no caso em julgamento.

Servidora pública consegue inscrição na OAB por determinação da Justiça

A 7ª Turma do TRF da 1ª Região concedeu a uma servidora pública de Tocantins o direito de se integrar à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-TO). O presidente da seccional tentou impedir o ingresso da advogada, aprovada no exame da Ordem, porque ela ocupa cargo comissionado de assistente de gabinete de um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins (TCE-TO).

A OAB-TO já havia sido obrigada a “aceitar” a servidora duas vezes, em decisões da 2ª Vara Federal do estado – a primeira, em caráter liminar. Resolveu, então, apelar ao TRF. O argumento apresentado foi o de que as atividades exercidas pela assistente são incompatíveis com a advocacia, com base no artigo 28 da Lei 8.906/94. No inciso II, o texto define que a incompatibilidade vale para os “membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas”, entre outros.
 
Entretanto, o relator da ação no TRF, desembargador federal Luciano Tolentino Amaral, frisou no voto que os membros do tribunal de contas são os conselheiros. Já a advogada é “mera ‘servidora pública’ lotada no TCE-TO”, esclareceu. O magistrado também destacou que o cargo comissionado de assistente de gabinete “não possui atribuição específica, conforme informado verbalmente pelo diretor de Recursos Humanos do Tribunal de Contas do Estado”. Dessa forma, “as atividades por ela desempenhadas não têm cunho decisório”, o que afasta a situação de incompatibilidade para o exercício da advocacia, prevista na lei.
 
O desembargador federal ressaltou, contudo, que a advogada, na condição de servidora da administração direta, não poderá advogar contra a Fazenda Pública Estadual, conforme dita o artigo 30 da Lei 8.906/94. O voto foi seguido por unanimidade e, com isso, a OAB-TO deverá aceitar o ingresso da servidora no quadro de advogados da seccional.
 

Fonte: TRF 1

Como se já tivessemos poucos advogados, agora até servidores públicos estão pretendendo a inscrição. Pena que o TRF acha por bem deferir mais uma, e pior,  nestas condições.