LUIZ FLÁVIO GOMES Jurista, diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do portal atualidadesdodireito.com.br. Estou no luizflaviogomes@atualidadesdodireito.com.br Promovemos na sede do AD (em 27.05.13) um debate (que já está disponível no atualidadesdodireito.com.br) sobre “Direito autoral: a reserva do conhecimento dos fatos”, tendo como foco a polêmica criada por Roberto Carlos e sua equipe jurídica.
LUIZ FLÁVIO GOMES
Jurista, diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do portalatualidadesdodireito.com.br.
Estou no luizflaviogomes@atualidadesdodireito.com.br
Promovemos na sede do AD (em 27.05.13) um debate (que já está disponível no atualidadesdodireito.com.br) sobre “Direito autoral: a reserva do conhecimento dos fatos”, tendo como foco a polêmica criada por Roberto Carlos e sua equipe jurídica, em torno do livro “Jovem Guarda: Moda, música e juventude”. Ele pode até se sentir ofendido com alguns livros já escritos ou que serão escritos a seu respeito, mas neste caso o seu ato foi totalmente desarrazoado, equiparando-se às grandes queimas históricas de livros.
A Wikipédia nos informa que a história testemunhou a queima da Biblioteca de Alexandria pelas forças Cristãs, da Biblioteca de Bagdad pelos Mongóis, a queima de livros e o enterrar de estudiosos na Dinastia de Qin na China, a destruição dos códices Maias pelos conquistadores e padres Cristãos espanhóis, a queima de livros Muçulmanos e Judeus por Católicos durante a Inquisição, a queima da Torah pelos Cristãos na Alemanha e a destruição da Biblioteca Nacional de Sarajevo. Em 1193, após derrotar Jai Chand, diz-se que o exército de Ghauri, maioritariamente Muçulmano, queimou a Biblioteca de Nalanda, conhecida como Dharma Gunj, Montanha da Verdade. Hitler mandou queimar milhares de livros logo que chegou ao poder etc.
A polêmica é a seguinte: no início do mês de abril, os advogados do cantor Roberto Carlos enviaram uma notificação extrajudicial exigindo a interrupção da venda e o recolhimento dos exemplares à disposição do livro “Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude”, originada de uma dissertação de mestrado de Maíra Zimmermann (Estação Letras e Cores e Fapesp), historiadora e professora de moda e cultura (FAAP).
A notificação insurge-se tanto contra a capa – um croqui nada caricato ([1]) do trio Roberto/Erasmo/Wanderléa – alegando o uso indevido de imagem, quanto contra seu conteúdo, pois teria trazido detalhes sobre a trajetória de vida e da intimidade do cantor. Ao final, o documento exige que “seja cessada a comercialização do referido livro, bem como ordenado o recolhimento dos exemplares à disposição, no prazo de 10 dias, sob pena das medidas judiciais cabíveis.”. Essa posição prontamente se revelou contraditória, pois em entrevista concedida por telefone ao jornal ‘Estadão’, o advogado Marco Campos (acertadamente) afirmou que não iria pedir a retirada dos exemplares ([2]).
O livro de Maíra não contém uma biografia do cantor, nem revela detalhes de sua vida íntima; não conta detalhes de sua intimidade nem da sua vida pessoal. Ao contrário, trata-se de uma obra acadêmica sobre a construção da cultura no Brasil dos anos 60, erigida sob os influxos do movimento denominado “Jovem Guarda”, envolvendo aspectos como moda, costumes, comportamentos, diálogos, família e influência dos artistas no desenho da nova adolescência. Portanto, atrelado à liberdade de expressão, à memória e à história do país. Trata-se de uma obra cultural, que conta um trecho da história do Brasil.
A conduta de Roberto Carlos – repetida em episódios pretéritos ([3]) – ganha destaque no momento atual, em que se discutem eventuais mudanças na lei civil, a qual passaria a permitir que uma biografia possa ser lançada sem a autorização prévia do biografado. Prestes a ser encaminhada para votação no Senado, depois de ser aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o projeto acaba de voltar à Câmara a pedido do deputado federal da bancada evangélica Marcos Rogério (PDT-RO) ([4]).
Minhas conclusões extraídas do debate acima referido, depois de ouvir os jornalistas Júlio Maria (Estadão) e Edmundo Leite (Estadão), assim como a autora do livro e a professora doutora Suzana Torres, mais a advogada Luciana Shimabukuro (cf. aqui no atualidadesdodireito.com.br), são as seguintes:
1) Que o atual art. 20 do CC (que determina a autorização dos interessados para a publicação de obra biográfica) não se aplica no caso do livro de Maíra, que não é biográfico.
2) Esse art. 20 já poderia (desde logo) ser interpretado conforme a Constituição, o que significaria que o comando é da liberdade de expressão, com responsabilidade. Que cada um poderia (ou pode) escrever o que queira, desde que assuma em seguida a responsabilidade (civil e penal) pelo que foi escrito.
3) Que o juiz jamais poderia impedir a publicação de qualquer livro (porque isso viola a constituição federal, mais precisamente a liberdade de expressão, de crítica etc.). Vivemos num estado de liberdade e não em uma ditadura.
4) Que o tempo das censuras acabou, no ordenamento jurídico-constitucional. Mas isso não significa o fim do direito à privacidade, intimidade, fama, boa reputação etc.
5) Que qualquer tipo de censura significa “Estado de Exceção”. O que a CF garante a quem se sente ofendido é o direito de indenização.
6) Que cada pessoa assuma a responsabilidade pelo que faz (e pelo que escreve). Todo abuso será reprimido por meio de indenização.
7) Quem se sente ofendido com o texto publicado deve ir a juízo para postular o que entender de direito em termos de indenização (nunca para censurar o livro).
8) Que o juiz cautelarmente poderia, em tese, mandar bloquear parte da receita do livro assim como dos direitos autores, para garantia de uma eventual e futura indenização. Freios e contrapesos. Havendo fumaça do bom direito, não há como não pensar em garantias de uma futura indenização.
9) Que uma obra cultural, histórica e acadêmica, como o livro questionado, está completamente fora de qualquer tipo de discussão sobre sua legitimidade (e lisura). Ninguém pode impedir qualquer pessoa de escrever a história do Brasil (ou de um momento dela). As futuras gerações somente entenderão o Brasil quando souberam do que se passou com as anteriores. A proibição de uma obra histórica e cultural tem o mesmo significado que queimar novamente a Biblioteca de Alexandria.
10) A jovem guarda foi um momento cultural e histórico ímpar, que merece sempre ser respeitado e retratado em obras ou trabalhos acadêmicos, sem qualquer tipo de censura retrógrada.
11) Que esse movimento constitui um antes e um depois da juventude brasileira, que tem o direito de saber o que efetivamente se passou naquela época.
12) Constitui um desserviço à nação a censura de qualquer tipo de trabalho acadêmico que retrate com fidelidade esse período histórico, sem qualquer propósito de ofender quem quer que seja.
13) Que a Universidade, nascida na Idade Média (Bolonha e Salamanca), veio com o escopo de discutir as ciências, as artes, a política, as ideologias, enfim, o mundo, com total autonomia.
14) O povo que não conta com Universidades autônomas e livre circulação das ideias tem como destino a ignorância eterna.
15) No entrechoque do direito à imagem e o direito à informação, prepondera o segundo nos Estados democráticos de Direito (na Inglaterra, desde o século XVII), assumindo seu autor as devidas responsabilidades pelo que informa.
16) O interesse nacional, histórico e cultural deve sempre ter prioridade em relação a qualquer tipo de interesse privado que tenta impedir a sua difusão.
17) Houve exagero na censura feita por Roberto Carlos em relação ao livro de Maíra Zimmermann. O exagero foi compensado, em parte, em seguida, quando seu advogado disse que a obra não seria tirada de circulação. Bom senso.
18) Quem desfruta do bônus da fama tem o ônus da publicidade da sua história, no contexto da cultura do país.
19) Que o legislador altere rapidamente o art. 20 do CC, evitando expressões vagas e porosas (“dimensão pública”, “interesse coletivo” etc.) no novo texto, que vão permitir juízes retrógrados impedirem a circulação de livros.
20) Roberto Carlos continua sendo nosso rei e tendo nossa admiração, mas não pode se valer da falácia da autoridade para adequar o mundo a seu bel prazer.
PARTE II – LEGISLAÇÃO APLICÁVEL (e de “lege ferenda”)
1) ART. 5º DA CF
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
2) ART. 20 DO CC
a) atual:
“CAPÍTULO II
DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
(…)
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.”.
b) com a alteração promovida pelo PL 393/11:
“Art. 20 …………………………………………………………………………
…………………………………………………… .
§ 1º Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
§ 2° A mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade.
Art. 3° Esta lei entra em vigor na data de sua publicação” (DESTAQUE NOSSO).
3) Projeto de Lei 393/2011, do deputado federal Newton Lima (PT-SP), que altera o Código Civil — a Lei 10.406/2002:
a) inteiro teor
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=840265&filename=PL+393/2011
b) tramitação do PL: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=491955
c) trecho do parecer emitido pelo relator na CCJC, Dep. Alessandro Molon (PT-RJ):
“Ressalte-se que o Projeto de Lei em análise visa apenas autorizar a publicação de biografias de pessoas públicas. Desta forma, sua finalidade é a de melhor ponderar situações de conflito que ocorrem entre o direito à imagem e à privacidade de um lado e o direito à liberdade de informação e o acesso à cultura de outro.”.
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1043850&filename=Tramitacao-PRL+1+CCJC+%3D%3E+PL+393/2011
PARTE III – OUTRAS REPORTAGENS
– em ordem crescente;
– não coloquei todos os sites, pois havia muitas reportagens idênticas.
1) 23/04/13
Roberto Carlos tenta impedir venda de livro sobre a Jovem Guarda
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/cultura-e-lazer/segundo-caderno/noticia/2013/04/roberto-carlos-tenta-impedir-venda-de-livro-sobre-a-jovem-guarda-4115282.html
2) 25/04/13
A ditadura da vaidade de Roberto Carlos
Quem é o maior censor do Brasil? Esse cara sou eu, diria o cantor que tenta vetar a circulação de um livro pela terceira vez
http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/a-ditadura-da-vaidade-de-roberto-carlos
3) 26/04/13
Justiça
‘Parece que Roberto Carlos nem leu o livro’, diz autora perseguida
Maíra Zimmermann, que lançou recentemente ‘Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude’, vai manter o título à venda, apesar de notificação extrajudicial dos advogados do cantor, que exige o recolhimento dos exemplares
http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/parece-que-roberto-carlos-nao-leu-o-livro-diz-autora-censurada
4) 28/04/2013 – 10h25 – Atualizado em 03/05/2013 – 11h03
Roberto Carlos tenta impedir mais uma vez a circulação de um livro. O que você acha disso?
http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2013/04/eu_aqui/forum/1434132-roberto-carlos-tenta-impedir-mais-uma-vez-a-circulacao-de-um-livro-o-que-voce-acha-disso.html
5) 29/04/13
Roberto Carlos impede uso de sua imagem em um livro
http://tvbrasil.ebc.com.br/reporterbrasil-noite/episodio/roberto-carlos-impede-uso-de-sua-imagem-em-um-livro
6) 30/04/13
Depois de livro, Roberto Carlos notifica mais seis produtos que usavam sua imagem, diz jornal
http://entretenimento.r7.com/musica/noticias/depois-de-livro-roberto-carlos-notifica-mais-seis-produtos-que-usavam-sua-imagem-diz-jornal-20130430.html
7) Sexta-feira, 03 de Maio de 2013
Roberto Carlos pode “proibir” livro de Lobão
http://www.conexaojornalismo.com.br/noticias/roberto-carlos-pode-proibir-livro-de-lobao-1-9658
8) 06/05/13
CELEBRIDADES SE ARTICULAM PARA LANÇAR MANIFESTO CONTRA LEI DAS BIOGRAFIAS
MÔNICA BERGAMO / FOLHA S. PAULO / ILUSTRADA – 6/5/2013
http://www.clubedorei.com.br/news/detail.asp?iData=2852&iCat=1221&iChannel=1&nChannel=News
9) 06/05/13
06/05/2013
Geral
Roberto Carlos pede retirada de livro sobre os anos 60 escrito por catarinense
http://bandsc.com.br/canais/noticias/roberto_carlos_pede_retirada_de_livro_sobre_os_anos_60_escrito_por_catarinense.html
10) 07/05/13
Reportagem exibida no jornal matinal “Fala Brasil” (Rede Record), no dia 07.05.13.
http://noticias.r7.com/videos/projeto-de-lei-pode-liberar-a-publicacao-de-biografias-nao-autorizadas/idmedia/5188fbc60cf2bc58c7308e4f.html
Assista ao debate.
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[1] Caricatura: 1 Representação pictórica ou descritiva, que exagera jocosamente as peculiaridades ou defeitos de pessoas ou coisas. 2 Imitação cômica ou ridícula. 3 Indivíduo ridículo pelo aspecto ou pelos modos. Disponível emhttp://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=caricatura.
[2] Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,maquina-quente-,1024862,0.htm.
[3] Em 1979, ele conseguiu, na Justiça, que “O Rei e Eu”, de Nichollas Mariano, seu ex-mordomo, fosse censurada. Em 2007, a Editora Planeta teve que recolher os exemplares de “Roberto Carlos em Detalhes”, escrito por Paulo César de Araújo.
[4] Segundo o deputado, é “preciso explicar melhor esse conceito de dimensão pública”, termo utilizado pelo PL 393/11. Disponível emhttp://www.estadao.com.br/noticias/impresso,maquina-quente-,1024862,0.htm.