A 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) decidiu, por unanimidade, autorizar a interrupção de uma gravidez por se tratar de um feto anencéfalo.
A gestante alega que pela ultrassonografia obstétrica, realizada no início do período gestacional, “foi constatado que o feto é portador de anomalia irreversível, consistente em anencefalia e ausência de calota craniana, o que resulta em probabilidade de morte em 100%”. Ela afirma que após a constatação das anomalias pelo primeiro exame, realizou mais dois, em outras clínicas e sob a supervisão de médicos diversos, tendo confirmado o resultado inicial. Então, solicitou à Justiça a interrrupção da gravidez.
Sob o argumento de que “a legislação pátria assegura os direitos do nascituro”, a Justiça da comarca de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, negou o pedido da gestante que recorreu da decisão.
O relator do recurso, desembargador, José Antônio Braga, autorizou a interrupção da gravidez por entender que “não se quer evitar a existência de uma vida vegetativa, mas sim paralisar uma gravidez sem vida presente ou futura”. E, ainda afirma que o prosseguimento da gravidez seria capaz de gerar danos à integridade física e mental da gestante e de seus familiares, por isso “o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana deverá prevalecer sobre a garantia de uma vida meramente orgânica”.
Os desembargadores Generoso Filho e Osmando Almeida acompanharam o voto do relator.
Fonte: TJMG
Abortar, etimologicamente (ab-ortus, privar do nascimento), significa a interrupção violenta do processo de gestação com a conseqüente morte do feto. O termo anencefalia pode ser definido como “un defecto en el desarrollo del cerebro que se caracteriza por la ausencia de hemisférios cerebrales y de las cavidades superyacentes del craneo.” (National Information Clearinghouse for the infans with Disabilities and life-threatning conditions, 1996 apud Problemas Derivados de la exigencia de morte encefalica en la donación y transplante de órganos referencia a la situacion de anencefalia del donante, UVRS, vol.32,nº84, 1999, p. 48) razão pela qual podemos de logo estabelecer uma premissa, não existe possibilidade da perpetuação da existência do neonato que for portador de anencefalia.
Um segundo argumento diz respeito a uma das regras da Escola Histórica do Direito, surgida no séc XIX, fundada no pensamento de Friedrich Karl Von Savigny (1778-1861), na Alemanha, ao observar que a lei, antes de ser uma criação arbitrária do legislador, produto de sua razão, deve espelhar o desenvolvimento histórico de cada povo, pois, na medida em que as condições da vida social vão se alterando, deve a lei se adaptar às novas situações.
Sabemos que o nosso Código Penal data de 1940, ainda que reformado em 1984, na sua parte geral, mantém quase na sua integralidade a redação da época ditatorial do Estado Novo, com conceitos envelhecidos e equivocados, olvidando-se de se atualizar na nova contextualização dos avanços da ciência e da tecnologia.
Considerando que não podemos deixar de avaliar o assunto sob o prisma da globalização, impende registrar que praticamente todos os países desenvolvidos já autorizam o aborto por anencefalia (Itália, Espanha, França, Suíça, Bélgica, Áustria, entre outros), contudo, na contra-mão deste posicionamento encontramos as nações em desenvolvimento como Brasil, Peru, Paraguai, Venezuela, Argentina, Chile, Equador.
Um outro viés que ganha importância na discussão do tema é a ótica dos religiosos, os quais exercem uma pressão muito grande junto aos políticos e até mesmo perante os julgadores para impedirem a descriminalização de tal conduta. Anote-se que vivemos num Estado Laico e que as questões religiosas, inobstante a liberdade de culto assegurado pela Carta Constitucional (art.5°, VI), não podem e não devem interferir nas decisões do Poder Judiciário, carecendo assim de legitimidade , quaisquer espécies de Lobbies que possam ser entabulados com o escopo de interferir nos destinos da discussão do tema.
O julgamento em questão aponta no sentido que estamos defendendo a um bom tempo, conferir : ABORTO EM CASOS DE ANENCEFALIA: CRIME OU INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA, Revista Magister – Direito Penal e Processual Penal, número 04, págs 62-76, fevereiro-março 2005; ANENCEFALIA: NOVOS RUMOS PARA CIÊNCIA JURÍDICA, Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, número 29, págs 32-45, dezembro-janeiro 2005 e penso que embora não exista previsão legal favorável ao abortamento, não seria justo submeter a gestante ao intenso sofrimento de carregar consigo o feto sem a menor perspectiva de vida futura. Assim, uma vez constatada a hipótese de que a vida seria inviável por grave anomalia acometida ao feto, poderia a lei autorizar o abortamento, ou seja, a interrupção daquele processo de gravidez, já que a nada conduziria prosseguir com ela.
Corretíssima o posicionamento do TJMG, tendo em vista que a justiça não pode se distanciar dos avanços científicos, devendo sempre acompanhar as mudanças éticas e culturais da sociedade. Afinal a gravidez não modifica apenas o corpo da mulher, mas também seu estado psíquico, não sendo, portanto apenas biológica.